27 de março de 2018

Nuno Júdice, as encruzilhadas dos passos da cruz

«...a verdadeira história está nos romances, porque aí é onde o homem projeta a sua realidade, entre o que viveu e o que sonhou, sem qualquer preocupação de construir uma cena dominada pela verosimilhança...»
Nuno Júdice, Os passos da cruz  (2009)
Entre 1681 e 1703, Antónia Margarida de Castelo Branco (1652-1717) deu forma escrita a uma das mais polémicas autobiografias que os anais portugueses registam. A autora encontrava-se então no convento da Madre de Deus de Xabregas, em Lisboa, onde havia professado em 1679 com o nome de Sóror Clara do Santíssimo Sacramento. Até aqui nada de especial, se não se desse o caso da Fiel e Verdadeira Relação que dá dos sucessos de sua vida a criatura mais ingrata a seu Criador por obediência de seus Padres espirituais desvendar as razões que a haviam levado a submeter-se a um penoso processo de divórcio (1679) que a libertaria do calvário dum casamento desventurado de oito anos com Brás Teles de Meneses e Faro.

É verdade que o primeiro barroco português já tinha assistido a um outro processo de anulação de matrimónio católico (1668) ainda mais escandaloso, visto envolver os mais altos dignitários do reino. Nem mais nem menos do que as cabeças coroadas de D. Afonso VI e D. Maria Isabel Francisca de Saboia, os soberanos da recentemente instaurada Dinastia de Bragança. A impotência do rei para consumar os seus deveres conjugais e a incompetência desse mesmo rei para gerir os negócios do estado terão sido mais do que suficientes para acelerar a resolução do problema. As incapacidades do infeliz monarca são eficazmente superadas, quando o irmão, D. Pedro II, lhe sucede no trono e o substitui no leito, casando-se com a ex-cunhada.

Volvidos mais de trezentos anos, Nuno Júdice percorreu o relato da religiosa seiscentista e transformou a quase novela cortesã da sua existência numa novela completa quase exemplar, que intitulou Os passos da cruz (2009). Para tal, vistoriou com a máxima atenção os velhos arquivos nacionais (os reais e os inventados) à cata de documentos coevos comprovativos dos factos, calcorreou os lugares onde o drama foi sendo representado, imaginou histórias paralelas e teceu as linhas mestras dum romance quase histórico, em que as personagens convocadas se encontram nas encruzilhadas do espaço e do tempo, aquelas em que as sombras e os fantasmas do passado se confundem com as imagens e os rostos do presente.

O confronto entre a restauração da autonomia (1640-1668) e a recuperação da democracia (1974-1975) é constante. A acareação dessas duas revoluções encontra-se representada na novela/roman-ce (conto alargado) por duas mulheres visceralmente determinadas: Antónia e Rosa. Uma a recorrer aos braços protetores da igreja, a outra a acudir aos combates políticos do partido. Em ambos os casos, a confiarem nos segredos das duas poderosas instituições, a representante de Deus e a representante do povo. As duas lutadoras a confundirem-se uma com a outra, num completo desdobramento de personalidades, em que deixamos de percepcionar com clareza quando se trata de uma ou de outra. De quando se sai do domínio da história e se entra nos meandros da ficção, de quando se passa a fronteira que leva o sonho/pesadelo à realidade/ilusão. Pouco importa. Tudo se resume a um conjunto de variações barrocas sobre um tema único. Em termos simbólicos, os passos da cruz que todos nós teremos de dar ao longo desta nossa peregrinação pela vida, à procura de uma verdade que só logramos encontrar nas páginas fingidas dos textos literários, resultantes das pistas lançadas pelos autores e das soluções encontradas pelos leitores, todas elas diferentes (como é óbvio) entre si.

A relação seiscentista e o romance atual estão a propor as suas verdades. Sejam elas quais forem. Nenhum deles foi ou é um sucesso editorial de vendas, apesar do escabroso das histórias reveladas e dos expedientes narrativos seguidos. Leem-se, todavia, com muito prazer. A proposta de Antónia Margarida de Castelo Branco, por se tratar dum testemunho pessoal lavrado no feminino nos alvores da modernidade; a de Nuno Júdice, por ter trazido aos nossos dias pós-modernos o depoimento tão sentido de Sóror Clara do Santíssimo Sacramento. A parceria dos dois não podia ter resultado mais frutuosa.

NOTA
Trazido do Pátio de Letras no dia preciso que se cumprem 339 anos completos da profissão religiosa de Antónia Margarida de Castelo Branco e da sua entrada no convento da Madre de Deus em Lisboa.

3 comentários:

  1. Belo texto, que torna bem apelativo a leitura do romance...

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  2. E a leitura do romance de Nuno Júdice tornar-se-á ainda mais apelativa se for acompanhada da leitura da relação de Antónia Margarida de Castelo Branco, que a IN-CM publicou em 1984 com o título abreviado de «Autobiografia 1652-1717», inserida na série Biblioteca de Autores Portugueses.

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