«Arredores de um aeroporto, um terreno plano, baldio. Um homem ainda jovem aconchega um monte de terra. É um fim de dia, escurece. Quando termina o trabalho, pousa a enxada e olha em volta, vigiando o horizonte. Veste o casaco que estava por terra. Verifica a sua própria carteira. Coloca uns óculos de sol bem opacos, apesar de ser noite. Enquanto isso, uma rapariga, carregando uma mochila e um saco volumoso, aproxima-se. Caminha entre sonâmbula e determinada. Pega na enxada que se encontra no meio do espaço e começa a cavar. Quando dá pela presença do homem, interrompe a cavação. Olham-se, reciprocamente, desconfiados. Ele chama-se Emil, ela Laura, mas, entretanto, são apenas dois desconhecidos que se espiam. É ele quem quebra o silêncio. O diálogo é entretecido na base da desconfiança e do pressuposto.»
Lídia Jorge, Instruções para voar (2016)
Depois de ter lido uma e outra vez todos os romances e contos, de ter viajado pelo mundo encantado das histórias infantis e de ter seguido com espírito atento as reflexões críticas registadas em forma de ensaio, só me faltava bater à porta da dimensão dramática de Lídia Jorge e entrar decididamente nos meandros teatrais da sua arte cénica. Das duas peças levadas aos palcos de teatro, deixo temporariamente de parte A Maçon (1997), representada em Lisboa nos palcos do D. Maria II, por não ter encontrado até ao momento uma versão impressa em livro e me não ter ainda rendido à era mediática dos suportes digitais, que dão agora pelo nome up to date de e-books.
Rendido ao apelo irresistível do papel a cheirar a tinta, optei então pelas Instruções para voar (2016), estreado na sala principal do Trindade em março de 2016 e publicado em simultâneo pela D. Quixote. Assisti à sua representação por essas datas no Lethes de Faro, cuja companhia residente, a ACTA, produziu o espetáculo com encenação de Juni Dahr e cenografia de Jean-Guy Lecat, ao abrigo do projeto internacional de educação pela arte Pegada Cultural, da Footprint Program. Este último contacto silencioso que fiz com as palavras escritas da obra permitiram-me rever de modo complementar os diálogos que já ouvira com palavras faladas. Aquelas que foram proferidas sob as luzes da ribalta pelos dois protagonistas em palco, o Luís Vicente e a Elisabete Martins, com a colaboração dum grupo de alunos da Escola Secundária Tomás Caldeira, aquela onde iniciei o meu percurso docente em meados da década de 70.
A coisa feita segue a estrutura duma tragédia helénica clássica, aquela em que os ecos dum ontem e anteontem longínquos são matizados pelos holofotes dos dias de hoje, virados todos eles para um amanhã sem horizonte à vista. A lei das três unidades aristotélicas é cumprida escrupulosamente com uma economia minimalista de meios que nem a trindade ateniense ousou representar nos séculos de ouro da cultura ática. Tudo se passa num único espaço cénico, num único tempo dialógico e num único incidente dramático. Dois estranhos encontram-se no descampado dum aeroporto internacional não identificado e explicam-se mutuamente os motivos que os levaram até ali. A estrutura convocada pela instância narrativa reparte o debate travado entre os antagonistas reparte-se por três episódios intercalados por um par de intervenções do coro. A condição de nómadas de Emil e Laura é traçado minuciosamente, tendo como ponto aglutinador de destinos distintos a figura tutelar da mãe. A presença inspiradora de Dioniso repercute-se nos dois mortais que o tentam imitar. Tanto um como outro defendem ter nascido duas vezes como o deus dos ciclos vitais, a prevista no início do seu percurso existencial e a conquistada ao longo da sua travessia pelas encruzilhadas do mundo. Ironia trágica que proporciona a catarse dos atores e a sua saída de palco a iniciar uma longa caminhada a perder de vista pelos espetadores.
Depois da descida da cortina imaginária sobre o tablado ou virada a última página do livro onde se atualiza e guarda a história de dois globetrotters do terceiro milénio, ficam-nos nos ouvidos as palavras repetidas uma e outra vez pelas vozes masculinas e femininas que dão corpo à voz coletiva do coro. Advertem os dois vagabundos forçados por circunstâncias alheias à sua vontade, o romeno e a portuguesa, para se manterem de olhos abertos, para não os arrancarem, para não inviabilizarem assim a capacidade de ver e de fazer o que vai acontecer. Conselho sábio de sinal antiedipiano, especialmente adequado a uma visão global desconhecida no universo helénico de Sófocles. Aquele em que a tragédia da justiça divina, a tragédia dos heróis solitários e a tragédia das paixões humanas se devem enfrentar com uma visão apurada, porque tudo aquilo que fazemos provém da vontade esquiva de sermos maiores do que o corpo e termos mais vida do que a vida.
Curiosa alegoria que desperta uma certa inquietação perante o buraco que se escava... Haja instruções seguras para o voo, para que este seja uma experiência válida!
ResponderEliminarAs instruções são dadas, assim haja competência para voar.
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