2 de março de 2018

Lídia Jorge, instruções para voar com um aeroporto em pano de fundo

«Arredores de um aeroporto, um terreno plano, baldio. Um homem ainda jovem aconchega um monte de terra. É um fim de dia, escurece. Quando termina o trabalho, pousa a enxada e olha em volta, vigiando o horizonte. Veste o casaco que estava por terra. Verifica a sua própria carteira. Coloca uns óculos de sol bem opacos, apesar de ser noite. Enquanto isso, uma rapariga, carregando uma mochila e um saco volumoso, aproxima-se. Caminha entre sonâmbula e determinada. Pega na enxada que se encontra no meio do espaço e começa a cavar. Quando dá pela presença do homem, interrompe a cavação. Olham-se, reciprocamente, desconfiados. Ele chama-se Emil, ela Laura, mas, entretanto, são apenas dois desconhecidos que se espiam. É ele quem quebra o silêncio. O diálogo é entretecido na base da desconfiança e do pressuposto.»
Lídia Jorge, Instruções para voar (2016)
Depois de ter lido uma e outra vez todos os romances e contos, de ter viajado pelo mundo encantado das histórias infantis e de ter seguido com espírito atento as reflexões críticas registadas em forma de ensaio, só me faltava bater à porta da dimensão dramática de Lídia Jorge e entrar decididamente nos meandros teatrais da sua arte cénica. Das duas peças levadas aos palcos de teatro, deixo temporariamente de parte A Maçon (1997), representada em Lisboa nos palcos do D. Maria II, por não ter encontrado até ao momento uma versão impressa em livro e me não ter ainda rendido à era mediática dos suportes digitais, que dão agora pelo nome up to date de e-books. 

Rendido ao apelo irresistível do papel a cheirar a tinta, optei então pelas Instruções para voar (2016), estreado na sala principal do Trindade em março de 2016 e publicado em simultâneo pela D. Quixote. Assisti à sua representação por essas datas no Lethes de Faro, cuja companhia residente, a ACTA, produziu o espetáculo com encenação de Juni Dahr e cenografia de Jean-Guy Lecat, ao abrigo do projeto internacional de educação pela arte Pegada Cultural, da Footprint Program. Este último contacto silencioso que fiz com as palavras escritas da obra permitiram-me rever de modo complementar os diálogos que já ouvira com palavras faladas. Aquelas que foram proferidas sob as luzes da ribalta pelos dois protagonistas em palco, o Luís Vicente e a Elisabete Martins, com a colaboração dum grupo de alunos da Escola Secundária Tomás Caldeira, aquela onde iniciei o meu percurso docente em meados da década de 70.

A coisa feita segue a estrutura duma tragédia helénica clássica, aquela em que os ecos dum ontem e anteontem longínquos são matizados pelos holofotes dos dias de hoje, virados todos eles para um amanhã sem horizonte à vista. A lei das três unidades aristotélicas é cumprida escrupulosamente com uma economia minimalista de meios que nem a trindade ateniense ousou representar nos séculos de ouro da cultura ática. Tudo se passa num único espaço cénico, num único tempo dialógico e num único incidente dramático. Dois estranhos encontram-se no descampado dum aeroporto internacional não identificado e explicam-se mutuamente os motivos que os levaram até ali. A estrutura convocada pela instância narrativa reparte o debate travado entre os antagonistas reparte-se por três episódios intercalados por um par de intervenções do coro. A condição de nómadas de Emil e Laura é traçado minuciosamente, tendo como ponto aglutinador de destinos distintos a figura tutelar da mãe. A presença inspiradora de Dioniso repercute-se nos dois mortais que o tentam imitar. Tanto um como outro defendem ter nascido duas vezes como o deus dos ciclos vitais, a prevista no início do seu percurso existencial e a conquistada ao longo da sua travessia pelas encruzilhadas do mundo. Ironia trágica que proporciona a catarse dos atores e a sua saída de palco a iniciar uma longa caminhada a perder de vista pelos espetadores.

Depois da descida da cortina imaginária sobre o tablado ou virada a última página do livro onde se atualiza e guarda a história de dois globetrotters do terceiro milénio, ficam-nos nos ouvidos as palavras repetidas uma e outra vez pelas vozes masculinas e femininas que dão corpo à voz coletiva do coro. Advertem os dois vagabundos forçados por circunstâncias alheias à sua vontade, o romeno e a portuguesa, para se manterem de olhos abertos, para não os arrancarem, para não inviabilizarem assim a capacidade de ver e de fazer o que vai acontecer. Conselho sábio de sinal antiedipiano, especialmente adequado a uma visão global desconhecida no universo helénico de Sófocles. Aquele em que a tragédia da justiça divina, a tragédia dos heróis solitários e a tragédia das paixões humanas se devem enfrentar com uma visão apurada, porque tudo aquilo que fazemos provém da vontade esquiva de sermos maiores do que o corpo e termos mais vida do que a vida.

2 comentários:

  1. Curiosa alegoria que desperta uma certa inquietação perante o buraco que se escava... Haja instruções seguras para o voo, para que este seja uma experiência válida!

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  2. As instruções são dadas, assim haja competência para voar.

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