29 de março de 2017

Fernando Pessoa e os desassossegos de Bernardo Soares

«Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é – creio bem – uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de toda a valia da arte.»
Fernando Pessoa, Livro do desassossego (1982 | 2014)
Sobre Fernando Pessoa (1888-1935) já se disse tudo ou talvez esteja tudo por dizer, o que significa exatamente o mesmo. Mário de Carvalho, com toda a ironia que lhe é conhecida, até ousou intitular um artigo de opinião publicado no Diário de Lisboa de «Tanto Pessoa enjoa». Estava-se em maio de 1985, celebrava-se então o centenário do nascimento do poeta-prosador-ensaísta e os encómios de ocasião não conheciam limites de dar corda à veia retórica dos seus promotores. Não vou cair na tentação de tecer elogios suplementares a quem merecendo-os até os dispensa. Está fora dos meus hábitos embandeirar em arco com os nomes sonantes que os especialistas do tudo e do nada costumam lançar aos quatro ventos. A maior homenagem que se lhe pode prestar é ler os textos que foi compondo ao longo dos tempos e que só há pouco começaram a ser revelados ao mundo. O baú que serviu de abrigo ao espólio ao inventor de histórias em verso e prosa a que emprestou o nome ou ideou outros para lhe darem uma autonomia de faz de conta, como aliás ocorre com todo o universo imaginado pela literatura.

Reencontrei o diário-confissão-biografia do semi-heterónimo Vicente Guedes, depois transmudado para Bernardo Soares, numa edição cuidada de Richard Zenith. Refere a capa tratar-se duma versão completa do Livro do desassossego (2014), como se o caráter lacunar dos textos coligidos não estivesse definitivamente associado à obra, composta de modo descontinuado ao longo de duas ou três décadas por um inventado ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Li-o pela primeira vez aquando da sua revelação póstuma ao público, há mais de trinta anos, na altura em que se começava a preparar um pouco por toda a parte as comemorações já referidas do fazedor de quimeras que um dia afirmara ser o poeta um fingidor. Durante muitos tempo frequentei com assiduidade os fragmentos numerados dessa editio prínceps em dois volumes, preparada por Jacinto do Prado Coelho para a Ática (1982), a partir da recolha e transcrição de textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Facultaram-me viagens pelo mundo das inquietações existenciais do sujeito da escrita que preferia a prosa ao verso como modo de arte. Partiram para outras paragens para cumprir uma missão internacional de fama garantida.

Leio e releio este romance estático ou semirromance dum alter ego dinâmico – tantas vezes assumido e negado pelo herói/anti-herói da ficção que lhe dá voz – e vêm-me à memória os textos que li e reli dos filósofos da ansiedade, do absurdo, da alienação e do tédio de existir. O imitador dum outro igual a si acrescenta-lhes ainda as teias inextrincáveis da angústia, do abismo, do vómito, da náusea, do nada. Repetidos à exaustão. Do sono que é sonho, da vida que é morte, do sossego que é desassossego. A autobiografia sem factos flui sem vacilações de cabo a rabo, numa ordem arbitrária que é também paradoxo, destino, labirinto, decadência, monólogo. O inventor de outros eus-externos e coadjuvantes do seu eu-interior dedica largos excertos de reflexão à teoria da literatura e intercaladas com as estéticas da abdicação, do artifício e da indiferença. Redige uma carta para não mandar, lavra um exame de consciência e compõe uma marcha fúnebre. Produz uma glorificação das estéreis, abre diversas vezes um intervalo doloroso e situa-se numa floresta do alheamento. Idealiza uma amante visual, descreve uma ou outra paisagem de chuva e trovoada, traça um sentimento apocalíptico que poderá ou não estar contido numa viagem nunca feita. Os grandes trechos alternam com os restantes, num movimento incessante pela corrente do pensamento marcado pela espuma dos dias que seguem outros dias, repartidos pelo esforço inútil de preencher os intervalos vazios do repetitivo quotidiano.

No momento em que revisito estes desassossegos, este romance sem enredo, como confessa a páginas tantas o autor disfarçado de personagem, acaba de sair um conjunto de quarenta e nove lições ilustradas de vida e poesia, coordenadas por Carlos Pitella e Jerónimo Pizarro, com o título assertivo de Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida, com direito a um trailler e tudo disponibilizado na Net. Um dia destes, vou passar por uma livraria para folheá-lo atentamente e aproveitar a viagem para dar uma vista de olhos às Aventuras de Fernando Pessoa, escritor universal, contadas e desenhadas por Miguel Moreira e Catarina Verdier. É um fartar vilanagem que promete não ter fim. Um poço sem fundo a alimentar a saga ad æternum. Afortunados investigadores que tantos caminhos têm a palmilhar e a desbravar em forma de lição, ensaio, tese ou uma qualquer dissertação académica avaliada inter pares...

26 de março de 2017

Tabaco & Chocolate

La xocolatada

Painel de azulejos - 1710

[Museu del Disseny de Barcelona]

As tardes da sedutora de anjos, poetas e heróis...

Agora é na companhia de Catarina que Leonor amaina as angústias, expõe as dúvidas e, discutindo, reacende a criatividade. Em tardes demoradas com a amiga na pequena sala de trabalho tépida da casa desta na Luz, enquanto bebem licores ou chá de rosas-da-china, tocam saltério e recitam versos, a escutarem as confidências uma da outra, histórias contadas entre risos e palavras segredadas que lhes põem um brilho incendiado nos olhares. Leonor fala-lhe dos medos e dos sonhos entrelaçados, atados uns aos outros pelo mesmo laço de faltas, ausências e perplexidades, que num acinte lhe invadem as noites em claro.

Catarina fuma cigarros furtivos que faz com cuidado, a envolver, rolando e enrolando, o tabaco nas mortalhas quase transparentes. Às vezes passa-os a Leonor, que se os aceita, a quebrar hábitos e ditames da sua educação, logo se arrepende; não por ter infringido as regras ditadas pelo Marquês de Alorna seu pai, mas porque os cigarros lhe deixam a saliva grossa, e na boca um gosto toldado, um sabor a tédio e a equívoco que até então desconhecera.

Tenta amenizar a náusea, trincando amêndoas e chocolate, que tira dos pratos de cristal dispostos nas mesinhas de pau-santo, ao lado das taças por onde bebem o espumante. Às vezes leem poemas em voz alta, ou dormitam um tudo-nada. 

Muito ao de leve, como fazem os pássaros…

Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor (Lx, 2011: 774-775)

20 de março de 2017

Primaveras de pureza e renovação

PRIMAVERA

Giuseppe Arcimboldo

[Musée du Louvre - Paris - 1573]

Quando os dias ganham fôlego e igualam as noites

A primavera é a estação do renascimento e da purificação da natureza. Concreção periódica do mito do eterno retorno que nos faz sonhar com o da eterna juventude. A morte a render-se à vida. Coisas de deuses e heróis oferecidas anualmente aos homens. Ilusão efémera situada entre a friagem invernal e a canícula estival.

Giuseppe Arcimboldo (1527-1583) alia-o a Adónis. Às flores fres-cas, às roseiras bravas, às margaridas silvestres. Deu-lhe o aspeto juvenil de alguém que está enamorado da sua própria figura. Veste uma capa feita de elementos vegetais. Folhas, arbustos, musgo. O lírio escolhido como emblema simboliza a glória do amor sublimado.

As lições paradoxais que o maneirismo impôs na cultura quinhen-tista europeia mantêm-se atuantes nos nossos dias. A entrada num novo ciclo vital pressupõe também ele o início do fim. Tempus fugit. Os equinócios e solstícios batem-se entre si pelo predomínio dos dias e das noites. Miragem sazonal de luz e sombra. Nada mais...

15 de março de 2017

A caixinha mágica que mudou o mundo

POP ART

Roy Lichtenstein, Scalater Street, London, 2006

AS CANTIGAS DA RTP EM DIA DE FESTA

Quando nasci a televisão ainda não existia em Portugal. A primeira vez que a vi foi às cavalitas do meu pai. Fez-me olhar para uma caixinha cheia de luz e imagens em movimento que se encontrava no interior dum café. Ficámos do lado de fora porque a lotação se esgotara no interior. Teria uma meia dúzia de anos e esqueci-me por completo de mais pormenores. Na altura nem percebi bem o que estava a acontecer. Depois o insólito banalizou-se e habituei-me à sua presença em locais mais confortáveis.

Os períodos de transmissão engordaram e o número de canais dis-parou. Ganharam cor e novas formas de difusão. As grelhas de pro-gramação adaptaram-se aos modismos do momento. As noites de cinema e de teatro foram-se. As telenovelas da vida imitada come-çaram a alternar com as da vida real e a atropelar-se entre si. Os concursos sofisticaram-se, os noticiários eternizaram-se, os comen-tadores do tudo e do nada proliferaram como cogumelos em terreno baldio. A novidade evaporou-se e o tédio instalou-se.

Por estes dias a televisão fez 60 anos e celebrou a efeméride com a pompa usual. Passou-me em grande parte despercebida. As séries infindáveis de publicidade dos canais generalistas empurra-me cada vez mais para os transmitidos por cabo. Um breve zapping por todos eles deteve-me por instantes pelo festival da canção. se come-morava em apoteose a vitória duma delas e pela primeira vez em décadas consegui ouvi-la do princípio até ao fim. Gostei. Espantoso como a RTP ainda me consegue surpreender.

13 de março de 2017

Queques & Marmelada

JOSEFA DE ÓBIDOS

«Natureza morta - um marmelo»

Palavras vão, palavras vêm... 

Pedi emprestado a um quadro atribuído a Josefa de Óbidos (c1634-1684) a imagem dum marmelo seiscentista, idêntico em tudo aos que então serviriam às religiosas do mosteiro de Odivelas para confeci-onar a mais reputada marmelada da doçaria conventual portuguesa. A fama alcançada no seu tempo chegou até aos nossos dias, pelo que terá a sua quota-parte de verdade assegurada.

É pouco provável que a infanta Catarina de Bragança (1638-1705) tenha levado consigo para a corte de Carlos II Stuart uma reserva desse fruto acabado de colher ou transformado em compota. Já terá bastado à nova rainha consorte da Inglaterra, Escócia e Irlanda (1662-1685) ter-se feito acompanhar do precioso chá de Ceilão com que inaugurou entre os britânicos a tradição do five o'clock tea.

O que parece ser uma certeza é que nas merendas reais haveria uma citrinada de laranja amarga e uns bolos em forma de coroa. A compota virara marmalade pelos súbditos britânicos nos tempos em que Henrique VIII recebera uns boiões de marmelada portuguesa. Palavra vai, palavra vem, a soberana lusitana converteria os cakes em queques. O equilíbrio vocabular ficava assim estabelecido.

QUEQUE

Um cake em forma de coroa...

6 de março de 2017

Frédéric Richaud e as guerras longas e silenciosas do jardineiro do rei


«Jean-Baptiste de La Quintinie restait assez peu préoccupé de ces sourdes agitations. Il écoutait distraitement les récits sanguinaires qu'on venait lui conter, observait de loin l'inquiétude grandissante de la cour, les va-et-vient continus des messagers. Non qu'il ne s'intéressât pas aux campagnes et au devenir de leurs héros – il connais-sait bien Condé et éprouvait un réel plaisir à entendre les épisodes qui vantaient sa gloire nouvelle –, mais parce qu'il avait, de son côté, sa propre guerre à mener, une guerre longue e silencieuse, une guerre dont personne ne parlait.»
Frédéric Richaud, Monsieur le jardinier (1999)
Caso as leis da vida e da morte fossem compagináveis com as li-berdades que as palavras por vezes têm, Luís XIV poder-se-ia gabar de deter o mais longo reinado da história francesa e um dos mais extensos da europeia. Durante esses setenta e dois anos, repartidos por dois séculos (1643-1715), teve oportunidade de se tornar num dos soberanos mais marcantes do seu tempo e de ter convertido a Coroa Franco-Navarra dos Bourbon numa potência à escala global. Entre as peripécias sangrentas maiores das guerras dos Países Baixos, dos Nove Anos e da Sucessão Espanhola, e dos conflitos menores das guerras da Devolução e das Reuniões, ainda teve tempo de erigir o palácio de Versalhes, um dos maiores do mundo e símbolo indiscutível do absolutismo régio de origem divina que se arrogava ter. O Grande, lhe chamaram os súbditos, e Rei Sol, se passou a designar a si mesmo. Megalomanias do Ancien Régime a que a Révolution Française poria cobro no reinado de Luís XVI, o tetraneto que perdeu a cabeça na guilhotina por essas manias de poder ditadas pelos ditames do despotismo aristocrático ilimitado.

Se as paredes tivessem também a capacidade de falar, muito teriam a dizer sobre as incontáveis intrigas de corte, experienciadas no interior da residência oficial de Suas Majestades Cristianíssimas, erguida a uma distância confortável de Paris, capital do reino, a que as gerações seguintes batizariam de Cidade Luz. Frédéric Richaud estreou-se na literatura com um romance centrado em Jean-Baptiste de La Quintinie (1626-1688), intitulado Monsieur le jardinier (1999), nome pelo qual o botânico do rei passou a ser conhecido, à falta doutras dignidades nobiliárias que não possuía nem pretenderia possuir. Pelo menos é o que nos dá a entender o relato biográfico do obreiro do Jardin Potager du Roi à Versailles, i.e., a horta que passou a alimentar todos os inquilinos que se sentavam quotidianamente à mesa do monarca. História banal se não fosse protagonizada por uma das figuras mais notáveis da época, tanto a nível nacional como internacional. Senhor duma personalidade misteriosa, com um caráter reservado, modesto no trajo e cordato no trato. Enxada numa mão, a pá na outra, um enxerto em vista, em luta constante contra os insetos e as borrascas. Fascinante em qualquer circunstância.

Entre as muitas conquistas alcançadas pelas modernas tecnologias postas à nossa disposição, a possibilidade de viajar no tempo e de registar ao vivo o que de facto ocorreu no mundo concreto constitui ainda uma lacuna insuperável. Ficarão indefinidamente por determinar quais as palavras exatas proferidas ou pensadas por cada um de nós num qualquer instante da nossa vida já vivida. Sem tirar nem pôr nada de espúrio nesse filme fac-similado da nossa existência individual e coletiva. A verificar-se tal avanço, num futuro mais ou menos afastado, os atuais relatos históricos estariam condenados ao desaparecimento do universo dos géneros poéticos viáveis, por terem perdido o privilégio de imaginar o real. Sendo assim, só nos resta abstrair-nos do caráter aproximado dos diálogos-monólogos conjeturados com a verosimilhança exigida nestas circunstâncias pelos intervenientes da ficção, para proveito e deleite dos leitores. Aceitar, por exemplo, que o protagonista poderia ser um celibatário inveterado, como dá a entender o texto, quando os registos da época nos afirmam ter contraído casamento com Demoiselle Margueritte Joubert em 1670 e gerado três filhos, que lhe perpetuaram o nome.

O relato fragmentário das guerras longas e silenciosas do jardineiro do rei decorre entre 1674 e 1688, período de tempo que corresponde, grosso modo, ao seu envolvimento no projeto régio de criar um espaço rural destinado a suprir as necessidades diárias da cozinha do complexo palaciano. A monarquia foi-se, os impérios e repúblicas sucederam-se ininterruptamente ao longo dos tempos, os regimes políticos combateram-se incessantemente uns aos outros, mas o legado do grande visionário seiscentista mantém-se atuante nos nossos dias, muito embora os produtos hortícolas ali produzidos tenham deixado de ser consumidos apenas por alguns privilegiados de sangue azul aristocrático e se destinem atualmente a todos os interessados de sangue vermelho plebeu. Lidos os apontamentos biográficos que constituem o testemunho romanesco, fica-se com uma visão mais clara dum dos recantos menos conhecidos de Versalhes, aquele que os cortesãos de então se escusavam de pisar e os turistas apressados de agora se esquecem de visitar. Lacuna imperdoável que urge colmatar com celeridade. O espírito do seu criador continua bem vivo em todo esse vergel mágico, a promover ininterruptamente o diálogo do homem com a natureza, uma das formas mais elevadas da cultura.