«Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas razões, das quais a primeira, que é minha, é que não tenho escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda, porém, é de todos, e não é – creio bem – uma sombra ou disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque toca no sentido íntimo de toda a valia da arte.»Fernando Pessoa, Livro do desassossego (1982 | 2014)
Sobre Fernando Pessoa (1888-1935) já se disse tudo ou talvez esteja tudo por dizer, o que significa exatamente o mesmo. Mário de Carvalho, com toda a ironia que lhe é conhecida, até ousou intitular um artigo de opinião publicado no Diário de Lisboa de «Tanto Pessoa já enjoa». Estava-se em maio de 1985, celebrava-se então o centenário do nascimento do poeta-prosador-ensaísta e os encómios de ocasião não conheciam limites de dar corda à veia retórica dos seus promotores. Não vou cair na tentação de tecer elogios suplementares a quem merecendo-os até os dispensa. Está fora dos meus hábitos embandeirar em arco com os nomes sonantes que os especialistas do tudo e do nada costumam lançar aos quatro ventos. A maior homenagem que se lhe pode prestar é ler os textos que foi compondo ao longo dos tempos e que só há pouco começaram a ser revelados ao mundo. O baú que serviu de abrigo ao espólio ao inventor de histórias em verso e prosa a que emprestou o nome ou ideou outros para lhe darem uma autonomia de faz de conta, como aliás ocorre com todo o universo imaginado pela literatura.
Reencontrei o diário-confissão-biografia do semi-heterónimo Vicente Guedes, depois transmudado para Bernardo Soares, numa edição cuidada de Richard Zenith. Refere a capa tratar-se duma versão completa do Livro do desassossego (2014), como se o caráter lacunar dos textos coligidos não estivesse definitivamente associado à obra, composta de modo descontinuado ao longo de duas ou três décadas por um inventado ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Li-o pela primeira vez aquando da sua revelação póstuma ao público, há mais de trinta anos, na altura em que se começava a preparar um pouco por toda a parte as comemorações já referidas do fazedor de quimeras que um dia afirmara ser o poeta um fingidor. Durante muitos tempo frequentei com assiduidade os fragmentos numerados dessa editio prínceps em dois volumes, preparada por Jacinto do Prado Coelho para a Ática (1982), a partir da recolha e transcrição de textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Facultaram-me viagens pelo mundo das inquietações existenciais do sujeito da escrita que preferia a prosa ao verso como modo de arte. Partiram para outras paragens para cumprir uma missão internacional de fama garantida.
Leio e releio este romance estático ou semirromance dum alter ego dinâmico – tantas vezes assumido e negado pelo herói/anti-herói da ficção que lhe dá voz – e vêm-me à memória os textos que li e reli dos filósofos da ansiedade, do absurdo, da alienação e do tédio de existir. O imitador dum outro igual a si acrescenta-lhes ainda as teias inextrincáveis da angústia, do abismo, do vómito, da náusea, do nada. Repetidos à exaustão. Do sono que é sonho, da vida que é morte, do sossego que é desassossego. A autobiografia sem factos flui sem vacilações de cabo a rabo, numa ordem arbitrária que é também paradoxo, destino, labirinto, decadência, monólogo. O inventor de outros eus-externos e coadjuvantes do seu eu-interior dedica largos excertos de reflexão à teoria da literatura e intercaladas com as estéticas da abdicação, do artifício e da indiferença. Redige uma carta para não mandar, lavra um exame de consciência e compõe uma marcha fúnebre. Produz uma glorificação das estéreis, abre diversas vezes um intervalo doloroso e situa-se numa floresta do alheamento. Idealiza uma amante visual, descreve uma ou outra paisagem de chuva e trovoada, traça um sentimento apocalíptico que poderá ou não estar contido numa viagem nunca feita. Os grandes trechos alternam com os restantes, num movimento incessante pela corrente do pensamento marcado pela espuma dos dias que seguem outros dias, repartidos pelo esforço inútil de preencher os intervalos vazios do repetitivo quotidiano.
No momento em que revisito estes desassossegos, este romance sem enredo, como confessa a páginas tantas o autor disfarçado de personagem, acaba de sair um conjunto de quarenta e nove lições ilustradas de vida e poesia, coordenadas por Carlos Pitella e Jerónimo Pizarro, com o título assertivo de Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida, com direito a um trailler e tudo disponibilizado na Net. Um dia destes, vou passar por uma livraria para folheá-lo atentamente e aproveitar a viagem para dar uma vista de olhos às Aventuras de Fernando Pessoa, escritor universal, contadas e desenhadas por Miguel Moreira e Catarina Verdier. É um fartar vilanagem que promete não ter fim. Um poço sem fundo a alimentar a saga ad æternum. Afortunados investigadores que tantos caminhos têm a palmilhar e a desbravar em forma de lição, ensaio, tese ou uma qualquer dissertação académica avaliada inter pares...
Li no início do ano passado, o Livro do Desassossego, um livro que mais parece um poço sem fundo de tantos mistérios e interpretações que se nos deparam. Não sou, evidentemente, uma académica, sinto-me por esse facto muito à vontade para interpretar a obra como muito bem me aprouver. Gostava sim, de um dia voltar ao seu convívio, mas...
ResponderEliminarUm texto fabuloso sobre a realidade pessoana, Prof! Fernando Pessoa é um dos autores que vou visitando ao longo da vida e que sempre me deixa "desassossegada" face aos temas universais e infinitos que visita. Autor de quem outros autores também me ofertam outras facetas geniais...
ResponderEliminarPlenamente de acordo. Independentemente do que os académicos possam ou não dizer ou pensar duma obra concreta, a fruição da literatura depende exclusivamente do livre-arbítrio dos leitores de gostarem ou não gostarem do seu convívio, podendo, por conseguinte interpretá-la a seu belo prazer sem ter de prestar contas a ninguém. É o que eu costumo fazer e espero continuar a fazer daqui para a frente...
ResponderEliminar