6 de julho de 2018

Peter Høeg, as investigações de Smilla Jaspersen sobre os mistérios da neve

Det fryser ekstraordinære 18 grader celcius, og det sner, og på det sprog som ikke mere er mit, er sneen qanik, store næsten vægtløse krystaller, der falder i stabler, og dækker jorden med et lag af pulveriseret, hvid frost.
Peter Høeg, Frøken Smillas fornemmelse for sne (1992)
Numa das minhas visitas a Copenhaga, tive um encontro inesperado numa das livrarias centrais de cidade, a Arnold Busck, na Købmagergade 49. Ia acompanhado duma amiga que ali vive há algumas décadas. Deu-me um toque no braço e perguntou-me se sabia quem era aquele sujeito de cachecol colorido enrolado à volta do pescoço à moda nórdica, que se encontrava a poucos metros de nós a folhear um qualquer livro de título indecifrável. Perante o meu ar de admiração, avançou tratar-se de Peter Høeg, um dos mais aclamados escritores locais do momento. Acabava de publicar um romance que já era bestseller numa trintena de países incluindo o nosso. Pasmei. Até já tinha sido adaptado ao cinema com um sucesso semelhante. Estava a referir-se a Smilla e os mistérios da neve (1992), que consegui encontrar com alguma facilidade no idioma nativo, não muito longe duma versão em inglês. Como o meu conhecimento do dinamarquês se restringe a uma dúzia de palavras mal-pronunciadas, resolvi procurar mais tarde uma tradução para português. Foi o que fiz. Depois deixei-o a repousar tranquilamente no meio de muitos parentes seus até que os dias quentes do Sul lhe ditaram o fim duma hibernação forçada de anos.

A capa-contracapa e badanas avançam logo pistas sobre a natureza da fábula. Filiam-na na esfera dos thrillers escandinavos, onde reina o suspense e o exotismo noir. A suspeita dum crime terrível ocorrida no seio da pequena comunidade esquimó da Gronelândia a viver em Copenhaga funciona como o leitmotiv que norteará a quase meia centena de páginas onde se urdirão todas as intrigas, maquinações, enredos e conspirações anunciados pelos editores nos locais de destaque referidos. A tarefa de desvendar os mistérios escondidos na neve estará a cargo da protagonista, cujo nome nos é revelado no título. Um policial, em suma, com cenário centrado em dois polos distintos do universo dinamarquês, a capital do reino e a antiga colónia dos mares do Norte. Uma informação tão circunstanciada da trama desencadeou um efeito inibidor na minha vontade de avançar com a leitura do livro. É que o efeito da surpresa me parecia seriamente ameaçada de morte. Após uma hesitação passageira, decidi-me pela visita completa a esse mundo branco desconhecido de secretismos revelados em primeira mão e na primeira pessoa. Não me arrependi de o ter feito. Os publicitários nem sempre são tão exagerados como os pintam.

O testemunho pessoal relatado por Smilla Qaavigaaq Jaspersen distribui-se por seis partes, agrupadas em três blocos temáticos: a cidade, o mar e o gelo. As deambulações reflexivas proferidas propiciam-nos uma quase visita guiada pelas ruas, ruelas, praças,  pracetas, avenidas e alamedas de København. A ficção acaba por nos conduzir a espaços emblemáticos tantas vezes percorridos em visitas reais. A Christianshavn, o Kongens Have, o Kongens Nytorv, o Hotel d'Angleterre e La Brioche d'Or, o Dyrehaven, a Frelserkirke e o Amaliansborg. Depois dirigimo-nos para o porto. Embarcamos no Kronos, transpomos o estreito de Øresund, deixamos o Báltico e navegamos pelas águas oceânicas do Atlântico e do Ártico. O estreito de Helsingør-Helsingborg e o castelo de Kronborg ficam para trás e entramos na toponímia algo exótica dum navio de grande cabotagem preparado para as rotas geladas da Grønland. A voz feminina da protagonista-narradora continua a marcar o discurso mas começa a confundir-se com a do autor-romancista, que, antes de se dedicar à arte da escrita, já abraçara as atividades de bailarino, ator, marinheiro e alpinista. Toda uma experiência de vida vivida emprestada às vidas imaginadas.

Um miúdo de seis anos caiu do telhado dum prédio de sete andares e estatelou-se no chão sem vida. A testemunhar essa escalada insensata, ficaram registadas na neve as suas pegadas de criança. O inquérito oficial arrolou o desfecho trágico verificado na categoria dos acidentes. Tudo ficaria por aí se o suspeita de assassinato não tivesse surgido como uma hipótese tornada certeza. É que a vítima tinha pavor às alturas e nunca teria subido até àquele local de livre e espontânea vontade. Assim o pensou a vizinha, convertida em investigadora por conta própria do enigma e relatora dos resultados obtidos. No final, tudo se resolve ou quase tudo. Nessa perseguição sem tréguas para encontrar uma solução plausível do insólito, os perigos sem fim encontrados em cada esquina surgem em catadupa, como cogumelos bravios em terreno propício. Os arrepios causados pelas peripécias de percurso só não atingem um grau maior, porque sabemos tratar-se duma ficção realista verbalizada por um eu singular concreto, humano, abrangido pelas leis do natural, obrigado a sobreviver até ao derradeiro parágrafo, período e palavra escrita em letra de imprensa. E nada mais fica por dizer quando não há mais nada para dizer.

2 comentários:

  1. Uma recensão acessível e incentivadora para a leitura do policial tipicamente nórdico que nos trouxe.
    Cá em casa temos vindo a assistir e a acompanhar as séries nórdicas: dinamarqueses, filandeses, norueguesas e suecas, que a RTP2 nos tem brindado. Umas mais interessantes do que outras, policiais, politicas ou sociais. São ótimas e diferentes das americanas ou britânicas.

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  2. José Carlos S. Almeida22 de julho de 2018 às 12:13

    Achei um livro excelente e fiquei a conhecer algo que desconhecia: a discriminação contra o povo de origem esquimó levado a cabo pela liberal europa do norte.

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