30 de setembro de 2016

Uma bandeira no alto dum cedro


IDENTIDADE


«Muitos são aqueles que apresentam razões fortes para duvidar, mas eu tenho a certeza de que Portugal existe. Ainda há pouco tempo atravessei o território de norte a sul, demorei sete horas, sempre a abrir, as autoestradas funcionaram na perfeição, e por onde elas passavam havia bandeiras verde-rubras hasteadas em locais inimagináveis – encostas de montanhas, cimo de palheiros, telhados de igrejas e até em carros de bois, atadas aos fueiros da frente, eu as vi a acenar, como se a paisagem fosse uma parada. Isto aconteceu um mês depois de a Seleção Portuguesa ter ido à Suíça como favorita e os rapazes se terem portado mal. Quando perguntei a uma funcionária da estação de serviço por que razão ainda mantinham a bandeira arvorada no alto dos cedros, ela olhou-me com um certo desprezo – “Que importância tem? Não é por perdermos que deixamos de ser portugueses.”»

Lídia Jorge, Contrato sentimental (2009)

27 de setembro de 2016

Ritos iniciáticos de passagem e integração

O ovo estrelado

No final da década de 60 passei rapidamente da condição de finalista do ensino secundário para caloiro do ensino superior. Nem deu tempo para respirar. Na receção dos caloiros fui logo brindado com um ovo estrelado que me convidaram a usar na lapela até à categoria de veterano ou algo parecido. Um grande 90. Traduzindo por miúdos, vi-me compungido a informar os demais que a minha rodagem naqueles circuitos académicos era inferior a um ano. Assim exigia então o código da estrada a quem tivesse a carta há menos de 365 dias. Uma mensagem magistral curta e eficaz.

Não me perfumaram com bosta de vaca ou tripas de peixe. Não me grafitaram a cara ou vandalizaram a roupa. Não me besuntaram o cabelo e cobriram de farinha branca de neve ou de família menos nobre. Não me cobriram dos pés à cabeça com tintas de origem duvidosa. Não me arrastaram pelo chão. Não me obrigaram a dizer ou a fazer o que não queria. Só me convidaram a usar o tal ovo estrelado como insígnia escolástica duma peripatética debutante. Uma penúria completa na arte de praxar a torto e a direito. Tudo se passou na paz dos anjos que as guerras à data eram outras.

Nas décadas que agora correm os ritos iniciáticos de passagem e in-tegração ganharam um novo ritmo. Desenterraram-se as velhas pra-xes dum passado remoto e reinventaram-se outras mais prafrentex. E o cortejo lá vai cantando e rindo avenida acima, avenida abaixo. Líricas de primeira apanha a martirizar os ouvidos de quem passa com os top-ten pimba do momento. Fora do campus onde me encontro. Longe da vista, longe do coração. A tranquilidade reina por estas bandas. A dispensa das aulas obteve o nihil obstat reitoral. Preencham-se os dias ao sabor da maré. Gaudemus, hallelujah!

22 de setembro de 2016

Outonos de prosperidade e decadência

AUTUNNO

Giuseppe Arcimboldo

[Musée du Louvre - Paris - 1573]

Quando os dias emagrecem as noites engordam

O outono é a terceira estação do ano. Também podia ser a primeira ou a última. Tudo depende do ponto de vista que se adote. Princípio ou final de ciclo. É aquela que fica entre os calores do verão e os frios do inverno. É o início da inexorável da decrepitude. É o ponto simétrico da primavera que representa o desabrochar da juventude.

Giuseppe Arcimboldo (1527-1583) associa-o a Baco. Às uvas, às vindimas e ao vinho. Deu-lhe um rosto jovial de alguém que está contente com a vida e a quem lhe resta ainda a vontade de sorrir. A fortuna bafejou-o com os bens que a terra dá. Frutos e cereais. A romã utilizada como emblema simboliza a prosperidade alcançada.

Os maneirismos atualizados pelas pós-modernidades ligam-no ao retomar das atividades laborais depois das férias grandes anuais e de todas as rentrées. Os dias emagrecem e as noites engordam. Ine-xoravelmente. Inaugura-se o longo período de seis meses em que o equinócio da sombra espera ansiosamente pelo equinócio da luz...

19 de setembro de 2016

Ildefonso Falcones, a catedral do povo e de Santa Maria do mar

«―Esto no es una catedral ―oyeron a sus espaldas. Arnau y Joanet se miraron y sonrieron. Se volvieron e interrogaron con la mirada a un hombre fuerte y sudoroso cargado con una norme piedra a sus espaldas. ¿Y qué es?, parecía decirle Joanet sonriendo―. La catedral la pagan los nobles y la ciudad; sin embargo esta iglesia, que será más importante y más bella que la catedral, la paga y la construye el pueblo.»
Ildefonso Falcones, La catedral del mar (2006)
livros que estão particularmente talhados para viajar debaixo do braço. O tamanho pouco importa. Em período de férias, levamo-los para onde e quando queremos sem ter de dar satisfações a ninguém. Depois, abrimo-los de par em par e passeamos descontraidamente pelas histórias depositadas no seu interior. Ildefonso Falcones facultou-me inadvertidamente essa oportunidade este verão. Cruzei-me com La catedral del mar (2006) a caminho de Madrid. Antes de chegar ao terminal de Atocha, já estava entregue aos fascínios de Barcelona revelados no bestseller que viera ter ao meu encontro na pequena livraria de gare de Santa Justa de Sevilha destinada aos passageiros em trânsito ou compasso de espera. Fizera-o no momento exato determinado pelo acaso, aquele em que os mais dados aos mistérios virtuais do transcendente apostrofam de fado, fortuna, sina ou sorte. Terei sido, com toda a certeza, um leitor mais a acrescentar aos seis milhões doutros já rendidos à obra de estreia dum autor na primeira década da sua apresentação ao público. Feito este tido como ímpar e por isso mesmo comemorado agora com toda a pompa e circunstância usadas em casos que tais.

As seis centenas e meia de páginas corridas em que se espraia o fluir dos eventos convocados respeitam a linha cronológica em que ocorreram. Tudo se inicia em 1320 e termina 1384, período de tempo que abarca a construção a expensas do povo chão da basílica gótica de Santa Maria del Mar (1329-1383), o maior templo à data da cidade condal e que empresta o nome ao romance. O Principado da Catalunha transforma-se no centro catalisador de todo o relato, com um predomínio avassalador da capital e sede de cortes. Ruas e ruelas, praças e pracetas, casas e casebres, palácios e mansões, alternam entre si como cenários dos dramas vividos pelos seus habitantes. Nobres, fidalgos e arraia-miúda, cristãos, mouros e judeus, genoveses, castelhanos e outros mais. O fio condutor segue, todavia, no encalço de Arnau Estanyol, filho dum Bernat e pai dum outro, concebido como uma saga familiar, enquadrada no contexto medieval de Jaime II, Afonso IV e Pedro IV de Aragão. O conjunto dos sucessos narrados repartem-se por quatro fases de servidão a outras tantas realidades distintas ou a atos da peça em curso: a gleba, a nobreza, a paixão, o destino. No final, todos os conflitos se resolvem e abrem caminho para uma primeira sequela, já disponibilizada aos espetadores ansiosos de mergulharem de novo nos meandros labirínticos da lealdade e vingança, traição e amor, guerra e peste, criados pelo encenador consagrado das letras hispânicas atuais. E assim a história se faz novela.

Uma leitura ingénua ou ligeira dos factos poder-nos-ia levar a considerar o percurso existencial do protagonista como a dum genuíno pícaro pré-renascentista, composto no processador de texto pós-modernista por um advogado com alma de escritor nos tempos livres que a atividade forense lhe foi dando ao longo de quase cinco anos. Filho duma prostituta com fama de bruxa e dum assassino enforcado pela justiça, vê-se obrigado a trabalhar, desde muito jovem, como palafreneiro, estivador, soldado, cambista, cônsul e comerciante. Conhece a fome, os maus tratos físicos, um casamento infeliz. Para se tornar num Lazarillo de Tormes completo, só lhe faltaria trilhar os sendeiros da represália sistemática aos sucessivos volte-faces da Fortuna. Dir-se-ia estarmos na presença dum frequentador exemplar da hampa que os Séculos de Ouro peninsulares nunca reconheceriam como verosímil ou credível. A intolerância religiosa, a ambição material e a segregação social são incapazes de contagiar o herói da efabulação que, deste modo, lhe garante o estatuto inabalável de antipícaro exemplar. A sua fidelidade a Santa Maria do Mar, a cuja proteção se entregou toda a vida, garantem-lhe um final feliz, a ventura de se voltar a casar e a garantir a descendência exigida numa gesta imaginária de gente anónima a ombrear com as gestas reais de filhos-de-algo com direito a registo nas crónicas oficiais para memória futura. Em literatura como em historiografia, as linhas paralelas são as únicas que as tecem e lhes dão sentido. Estão sempre a olhar-se e nunca se tocam. Só na linha do horizonte é que se fundem. Ilusão própria dos pontos de vista de quem as observa.

16 de setembro de 2016

As indignações de Stéphane Hessel

Um pequeno grande livro com ideias inovadoras e críticas pertinentes...
Mário Soares

S'indigner c'est déjà résister...

No outono-inverno de há seis anos, as montras e estantes de todas as livrarias francesas forraram-se com um opúsculo de Stéphane Hessel a que dera o título singelo de Indignez-vous ! (2010). Uma dúzia de páginas chegara para incendiar os mass media gauleses e esgotar edições. O número de exemplares vendidos disparou, até atingir a cifra redonda de 1 300 000 em apenas quatro meses.

Em  tempo record, o panfleto viu-se traduzido para uma infinidade de línguas inventada pelos homens para comunicar entre si. Terá até estado na origem dos protestos de 2011 em mais de meia centena de cidades espanholas, organizados espontaneamente pelas redes sociais e idealizado pela plataforma ¡Democracia Real Ya! com a designação de Movimiento 15-M, Indignados ou Spanish revolution.

Tropecei no texto numas férias bretãs. Dei-lhe uma vista de olhos rápida e em diagonal. Achei curioso o que enxerguei e fiquei com vontade de lhe prestar mais atenção numa outra ocasião mais tranquila. Registei o título do livro e decidi visitá-lo de regresso a casa. Deixei passar entretanto a oportunidade e esqueci-me da sua existência. Reencontrei-me com o Indignai-vos! há dias. Li-o num fôlego.

Dispenso-me de resumi-lo. A leitura do original será sempre mais proveitosa. Assim saibamos interiorizar a mensagem que o envolve. Está à disposição do público português uma edição da Objectivo com prefácio de Mário Soares. Deixo também um acesso rápido em francês em formato PDF. Creio que Stéphane Hessel (Berlim: 1917 - Paris: 2013) merece a visita tanto numa língua como noutra...


Indignai-vos! - Indignez-vous ! - Time for outrage! - Empört Euch! - Indignați-vă! - ¡Indignaos! - Neem het niet! - Indignatevi! - Säg ifrån! - Indignádevos! - Indigneu-vos! - תזעמו! - Indignu ! - Indignatz-ve - Hiddətlənin ! - Haserretu zaitezte! - ¡Indigneu-vos!

12 de setembro de 2016

Mathias Énard, de bússola em punho em noite de insónia


«Nous sommes deux fumeurs d’opium chacun dans son nuage, sans rien voir au-dehors, seuls, sans nous comprendre jamais nous fumons, visages agonisants dans un miroir, nous sommes une image glacée à laquelle le temps donne l’illusion du mouvement, un cristal de neige glissant sur une pelote de givre dont personne ne perçoit la complexité des enchevêtrements...»
Mathias Énard, Boussole (2015)
Olho para a capa do último prémio Goncourt das letras francesas e vejo as ruínas duma cidade num deserto com as areias pintadas de laranja, amarelo e castanho. As cores que se costuma atribuir às grandes extensões de terra ressequida por um sol inclemente sem o menor vestígio de vida à vista. Julgo reconhecer a silhueta dum velho templo romano de Palmira. Posso estar enganado, ter sido arrebata-do pela imaginação, mas a impressão imediata que me ficou foi essa. Impossível ter uma certeza*. Os editores das Actes Sud dizem tratar-se duma ilustração DR. Nada mais. A indicação da obra foi-me dada por uma amiga que muito prezo e a quem agradeço por mais esta dica. Tenho vindo a aludir sem me descair a Mathias Énard e à Bússola (2015), romance centrado numa palavra trissilábica que se refere a uma caixinha quase mágica inventada para nos servir de guia, indicar o rumo e orientar nos percursos a seguir nos nossos itinerários desconhecidos. É a altura de falar dos caminhos que a agulha magnética colocada estrategicamente no interior do livro que tenho entre mãos me revelou ao longo da leitura.

Uma noite de insónia leva um musicólogo orientalista austríaco a passar em revista a sua vida já vivida entre viagens de além-fronteiras ocidentais da Europa, situadas em Viena, a seu ver a exata Porta Orientis do velho continente. Fá-lo em pouco menos de sete longas horas, criteriosamente marcadas no corpo do texto, das 23.10h às 6.00h da manhã seguinte, o que corresponde a 370 pá-ginas de texto corrido entremeado de uma dúzia de imagens a preto e branco elucidativas dum instante recordado. A corrente do pensa-mento conduz a um discurso caleidoscópico que salta de flash em flash, de tempos e espaços dispersos ao sabor do acaso, a emergir dos episódios guardados nas suas lembranças. Istambul, Alepo, Damas, Teerão são chamadas ao palco. Palmira também pisa esse palanque feito de sonhos e recordações. Paris é evocada a propó-sito dum encontro de percurso e companheira de muitas travessias. Amor impossível. Atração fatal alimentada por aventureiros, sábios, artistas e visitantes desse Grand Est que cruzam todo o testemunho posto à disposição do leitor. Música e literatura, história e religião, mito e lenda. Pontes que se lançam para ligar essas duas margens dos hemisférios palmilhados pelo sol no seu movimento diário de nascente para poente. O real e o imaginário que se fundem através da habilidade do Homem de mudar a natura em cultura.

Epopeia em prosa cantada por um aedo solitário de subjetividades atualizadas ao correr da pena. Assim pode ser definido à moda clássica este romance dos alvores do terceiro milénio. Os catálogos infindáveis de heróis da nossa fantasia criativa irrompem a cada passo, preenchendo cidades e países, ruas e praças, recintos aber-tos e fechados, acordando os sentidos para melodias, poemas, fic-ções, pensamentos recuperados em que a doença não ocupava ainda o espírito do protagonista. Projeto ambicioso de compor Des différentes formes de folie en Orient. Imenso políptico com cinco painéis de histórias desenhadas com palavras: Les orientalistes amoureux, La caravanne des travestis, Gangrène & tuberculose, Portraits d’orientalistes en commandeurs des croyants, L’Ency-clopédie des décapités.

Os nomes de Bethoven, Mozart, Liszt, Berlioz e Gluck ou os de Bal-zac, Stendhal, Kafka, Goeth e Proust destacam-se no campo das sonoridades musicais e verbais. Gostaria de acrescentar outros dois. Omar Khayyan e Fernando Pessoa. Autores de quadras dedicadas aos êxtases do vinho e das paixões humanas, separadas/unidas por oitocentos anos de devir poético. Os Rubaiyat compostos em persa e português e transcritos em francês para memória futura. Les beaux esprits se rencontrent. Reza o provérbio popular atestado à exaustão na fábula de factos feitos e fingidos. A heteronímia dum a pontuar a ortonímia do outro. Declaração explícita dum erudito da matéria proferida com a erudição dum autor premiado com as mais prestigiadas distinções literárias da francofonia. No final da insónia, o monólogo interior de Franz Ritter, um fumador de ópio entre muitos outros conhecidos e anónimos, é interrompido na tarefa hercúlea de salvar dum apagamento eterno as reminiscências de momentos pretéritos. Os versos duma canção de inverno ficam registadas nas derradeiras linhas do relato com os versos duma canção de inverno de Wilhem Muller & Franz Schubert, seguidas da confissão do memorialista de não sentir com esse ato vergonha de se entregar ao livre curso dos sentimentos e ao tépido calor da esperança. Epílogo feliz para coroar uma travessia noturna sem perspetivar grandes expetativas luminosas projetadas na linha do horizonte.

NOTA
(*) As incertezas por vezes desfazem-se e transformam-se em certezas. Uma viagem despreo-cupada pela Net levou-me até à localização exata das ruínas misteriosas desenhadas na capa do livro. Não são romanas nem se trata de Palmira, mas sim do que resta do velho templo persa sassânida de Taq-e Kisra. Encontra-se atualmente no Iraque, a 35 Km sudeste de Bagdad, e foi construído por Cosroes I para celebrar uma campanha contra os bizantinos em 540. Os editores das Actes Sud bem podiam ter sido mais claros na indicação precisa da ilustração DR.

7 de setembro de 2016

Milagre de Santa Maria de Faro em verso e aos quadradinhos

Iluminura das Cantigas de Santa Maria
Afonso X, O Sábio, 1280
[Biblioteca do Escorial, Madrid]

Pesar a Santa Maria

Esta é dum miragre que mostrou Santa Maria en Faaron quando era de mouros

Pesar à Santa Maria de quen por desonrra faz
dela mal a ssa omagen, e caomia-llo assaz.

Desto direi un miragre que feso en faaron
a Virgem Santa Maria en tempo d’ Aben Mafon,
que o reino do Algarve ti’ aquela sazon
a guisa d’ om’ esforçado, quer en guerra, quer en paz.
Pesar á Santa Maria de quen por desonrra faz…

En aquel castel’ avia omagen, com’ apres’ ei
da Virgen mui groriosa, feita como vos direi
de pedra bem fegurada, e, com’ eu de cert’ achei,
na riba do mar estava escontra ele de faz.
Pesar á Santa Maria de quen por desonrra faz…

Bem do tempo dos crischãos e sabian y estar,
e porende os cativos a yan sempr’ a orar,
e Santa Maria’ a vila de Faaron nomar
por aquesta razon foron. Mas o poboo malvaz
Pesar á Santa Maria de quen por desonrra faz…

Dos mouros que y avia ouveron gran pesar en,
e eno mar a deitaron sannudos com gran desden;
mas gran miragre sobr’ esto mostrou a Virgen que ten
o mund’ en seu mandamento, a que soberva despraz.
Pesar á Santa Maria de quen por desonrra faz…

Ca fez que niun pescado nunca poderon prender
enquant’ aquela omagen no mar leixaron jazer.
Os mouros, pois viron esto, fórona dali erger
e posérona no muro ontr’ as amas em az.
Pesar á Santa Maria de quen por desonrra faz…

Des i tan muito pescado ouveron des enton y,
que nunca tant’ y ouveram, per com’ a mouros oy
dizer e aos crischãos que o contaron a mi;
poren loemos a Virgen en que tanto de bem jaz.
Pesar á Santa Maria de quen por desonrra faz…”
Cantiga CLXXXIII, de Afonso X, O Sábio


NOTA
No dia em que se celebra o feriado municipal de Faro, por datar de 7 de setembro de 1540 a Carta Régia que serviu para D. João III elevar a Villa de Faram a cidade.

6 de setembro de 2016

Anuário em contracorrente

a·nu·á·ri·o
substantivo masculino
«Publicação anual»
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

As Histórias d'Arthur d'Algarbe cumprem hoje dois anos de existência na blogosfera. É altura de lhe dar os parabéns. Traga-se o bolo de aniversário. Acendam-se as velas comemorativas e apaguem-se de seguida com um só sopro. Cante-se a cantiguinha do costume e batam-se palmas de alegria. Abra-se a garrafa de espumante. Hip-hip-hurra! Que seja feliz e tenha muitos anos de vida. Que coza o forno e siga a festa. Cumpra-se o cerimonial da conta-corrente em contracorrente. Dê-se sentido ao anuário do real em espaço virtual...

3 de setembro de 2016

A rainha e as três filhas


Fragmento de fragmentos...

A rainha tinha três filhas.
Depois de governar todo o seu reino, estava agora velha, e muito doente.
Sentindo-se morrer, mandou chamar a filha mais velha:
– Vai à floresta negra descobrir a bruxa que me pode curar.
A floresta negra não tinha nome. Era a floresta negra.
A filha, que era cautelosa, respondeu:
– A viagem é perigosa. Se eu não voltar, nem tu nem eu poderemos governar o reino.
A rainha mandou chamar a segunda filha, que era invejosa.
– Porque hei de arriscar-me? – respondeu – Morre uma rainha, outra se segue, a mim tanto se me faz.
A rainha mandou chamar a terceira filha, que era bondosa.
– Irei – respondeu esta – Se morrer, não me importo. Ser terceira filha também não tem grande graça.
– Serás minha herdeira – disse a rainha. E sorriu.
Com a poção da bruxa contava tornar-se eterna.
Tanto tempo se passou que as duas irmãs mais velhas se esqueceram da terceira. Um dia chegou uma carta...
Maria Isabel Barreno, Inventário de Ana (1982)

NOTA:
No dia em que as Três Marias passaram a ser só duas. Maria Isabel Barreno (10.07-1939-3.09.2016) partiu para o país da imaginação, aquele onde o sonho de infinito se torna realidade. 

1 de setembro de 2016

Laura Esquível, como água para chocolate ou em ponto de rebuçado


«— ¡La verdad! ¡La verdad! Mira Tita, la mera verdad es que la verdad no existe, depende del punto de vista de cada quien.»
Laura Esquivel, Como agua para chocolate (1989)
São variados os trajetos que nos levam à presença dum livro. O acaso tem um papel muito importante neste processo de descoberta dum determinado conjunto de páginas impressas com histórias dentro. Alguém nos falou no autor ou na obra, uma visita a uma livraria, a capa sugestiva numa vitrina, uma prenda em data festiva proporcionaram-nos, em momentos diferentes, o encontro com a leitura casual e colocou o exemplar até então desconhecido nas nossas mãos. Poderia repetir muitas outras variedades de cruzamentos felizes do real e do imaginário e muitas outras ficariam por revelar. O caso concreto que a fortuna me reservou para chegar a Laura Esquível e a Como agua para chocolate (1989) foi um dos múltiplos canais temáticos de películas postas à nossa disposição pela televisão por cabo. Primeiro visionei o filme homónimo, realizado três anos mais tarde por Alfonso Arau segundo o guião da própria novelista mexicana, e só depois o procurei em formato tradicional e tamanho de bolso. Fi-lo de passagem rápida por Ayamonte, num pequeno espaço entretanto desaparecido de venda de imitações de vidas cerzidas como se fossem autênticas. Os imensos prémios literários e cinematográficos que desde então foram granjeando um pouco por toda a parte convidaram-me a repetir a visita estas férias ao bestseller traduzido para trinta e cinco idiomas e à fita campeã de bilheteiras, levando-me, ato contínuo, a sintetizar por escrito as impressões do duplo reencontro.

Novela de entregas mensais, com receitas, amores e remédios ca-seiros. Assim resumem os editores de edição por onde viajei a saga da família De la Garza que protagoniza o destino dos seus repre-sentantes fundadores, contemporâneos da Revolução Mexicana (1910-1917), relatada no trilho narrativo do realismo mágico latino-americano. A verdade da fábula remete-nos constantemente para a fantasia que cada um de nós, personagens e leitores, transporta dentro de si. De janeiro a dezembro, os modos de confecionar tor-tas, pastéis, bolos, chocolate, caldos, rabanadas, codornizes com pétalas de rosa ou guisado de peru com amêndoas e gerge-lim sucedem-se ao longo dum qualquer ano sem data exata precisa de calendário. Estão entremeadas por uma ou outra mezinha de fabrico caseiro complexo e por outras iguarias pantagruélicas de sonoridades exóticas de difícil execução por meros principiantes ou curiosos. A correspondência obrigatória entre a natureza dos produ-tos cozinhados e as festividades sazonais do momento prima pela ausência, devendo-se ao mero acaso do seu registo nos fascículos distribuídos de casa em casa, como se costumava então fazer com a literatura de cordel e se continua ainda a fazer em contextos mais populares. O tempo perde a linearidade a que estamos habituados, curva-se sobre si mesmo e dá origem a um fluir cíclico dos eventos passados e presentes se confundem entre si.

Os destinos dos heróis centrais da fábula tomam conta do relato. As receitas do livro de cozinha de Tita pontuam as etapas do seu rela-cionamento com Pedro: presenças e ausências, encontros e desen-contros, lágrimas e sorrisos, alegria e tristeza, frio e calor, paixão e ódio, amor e morte. A perceção da realidade nasce da emanação do sensorial. Como água para chocolate ou em ponto de rebuçado. Os elementos mágicos ou maravilhosos surgem a cada momento como parte integrante da normalidade quotidiana. O insólito é entendido como perfeitamente plausível num mundo pautado pela banalidade da condição humana. Tudo é possível. A verdade e a mentira depen-dem do ponto de vista de quem as sente e interpreta. Na república das letras tudo é possível e exequível. Até chamar as antigas epo-peias vindas do seio mais profundo das lendas e trazê-las ao conví-vio dos romances inscritos em folhas volantes ou encadernadas. Penélope desfazia todas as noites uma longa tapeçaria que havia te-cido durante o dia para evitar um matrimónio indesejado. Tita ocupa as noites a tecer uma longa tapeçaria para preencher o vazio da sua existência como ser condenado ao celibato. Os extremos tocam-se. Fundem-se através da poesia feita com versos-estrofes-cantos rimados de Homero e das frases-períodos-parágrafos cadenciados da prosa poética de Laura Esquível. Legado fantástico esse do aedo helénico à novelista hispânica. E assim o eixo cronológico dos factos já acontecidos e a acontecer se fundem num só para dar sentido aos que hão de vir. E assim o novo e o velho se confundem. E assim o realismo mágico da criação artística acontece.