«Nous sommes deux fumeurs d’opium chacun dans son nuage, sans rien voir au-dehors, seuls, sans nous comprendre jamais nous fumons, visages agonisants dans un miroir, nous sommes une image glacée à laquelle le temps donne l’illusion du mouvement, un cristal de neige glissant sur une pelote de givre dont personne ne perçoit la complexité des enchevêtrements...»
Mathias Énard, Boussole (2015)
Olho para a capa do último prémio Goncourt das letras francesas e vejo as ruínas duma cidade num deserto com as areias pintadas de laranja, amarelo e castanho. As cores que se costuma atribuir às grandes extensões de terra ressequida por um sol inclemente sem o menor vestígio de vida à vista. Julgo reconhecer a silhueta dum velho templo romano de Palmira. Posso estar enganado, ter sido arrebata-do pela imaginação, mas a impressão imediata que me ficou foi essa. Impossível ter uma certeza*. Os editores das Actes Sud dizem tratar-se duma ilustração DR. Nada mais. A indicação da obra foi-me dada por uma amiga que muito prezo e a quem agradeço por mais esta dica. Tenho vindo a aludir sem me descair a Mathias Énard e à Bússola (2015), romance centrado numa palavra trissilábica que se refere a uma caixinha quase mágica inventada para nos servir de guia, indicar o rumo e orientar nos percursos a seguir nos nossos itinerários desconhecidos. É a altura de falar dos caminhos que a agulha magnética colocada estrategicamente no interior do livro que tenho entre mãos me revelou ao longo da leitura.
Uma noite de insónia leva um musicólogo orientalista austríaco a passar em revista a sua vida já vivida entre viagens de além-fronteiras ocidentais da Europa, situadas em Viena, a seu ver a exata Porta Orientis do velho continente. Fá-lo em pouco menos de sete longas horas, criteriosamente marcadas no corpo do texto, das 23.10h às 6.00h da manhã seguinte, o que corresponde a 370 pá-ginas de texto corrido entremeado de uma dúzia de imagens a preto e branco elucidativas dum instante recordado. A corrente do pensa-mento conduz a um discurso caleidoscópico que salta de flash em flash, de tempos e espaços dispersos ao sabor do acaso, a emergir dos episódios guardados nas suas lembranças. Istambul, Alepo, Damas, Teerão são chamadas ao palco. Palmira também pisa esse palanque feito de sonhos e recordações. Paris é evocada a propó-sito dum encontro de percurso e companheira de muitas travessias. Amor impossível. Atração fatal alimentada por aventureiros, sábios, artistas e visitantes desse Grand Est que cruzam todo o testemunho posto à disposição do leitor. Música e literatura, história e religião, mito e lenda. Pontes que se lançam para ligar essas duas margens dos hemisférios palmilhados pelo sol no seu movimento diário de nascente para poente. O real e o imaginário que se fundem através da habilidade do Homem de mudar a natura em cultura.
Epopeia em prosa cantada por um aedo solitário de subjetividades atualizadas ao correr da pena. Assim pode ser definido à moda clássica este romance dos alvores do terceiro milénio. Os catálogos infindáveis de heróis da nossa fantasia criativa irrompem a cada passo, preenchendo cidades e países, ruas e praças, recintos aber-tos e fechados, acordando os sentidos para melodias, poemas, fic-ções, pensamentos recuperados em que a doença não ocupava ainda o espírito do protagonista. Projeto ambicioso de compor Des différentes formes de folie en Orient. Imenso políptico com cinco painéis de histórias desenhadas com palavras: Les orientalistes amoureux, La caravanne des travestis, Gangrène & tuberculose, Portraits d’orientalistes en commandeurs des croyants, L’Ency-clopédie des décapités.
Os nomes de Bethoven, Mozart, Liszt, Berlioz e Gluck ou os de Bal-zac, Stendhal, Kafka, Goeth e Proust destacam-se no campo das sonoridades musicais e verbais. Gostaria de acrescentar outros dois. Omar Khayyan e Fernando Pessoa. Autores de quadras dedicadas aos êxtases do vinho e das paixões humanas, separadas/unidas por oitocentos anos de devir poético. Os Rubaiyat compostos em persa e português e transcritos em francês para memória futura. Les beaux esprits se rencontrent. Reza o provérbio popular atestado à exaustão na fábula de factos feitos e fingidos. A heteronímia dum a pontuar a ortonímia do outro. Declaração explícita dum erudito da matéria proferida com a erudição dum autor premiado com as mais prestigiadas distinções literárias da francofonia. No final da insónia, o monólogo interior de Franz Ritter, um fumador de ópio entre muitos outros conhecidos e anónimos, é interrompido na tarefa hercúlea de salvar dum apagamento eterno as reminiscências de momentos pretéritos. Os versos duma canção de inverno ficam registadas nas derradeiras linhas do relato com os versos duma canção de inverno de Wilhem Muller & Franz Schubert, seguidas da confissão do memorialista de não sentir com esse ato vergonha de se entregar ao livre curso dos sentimentos e ao tépido calor da esperança. Epílogo feliz para coroar uma travessia noturna sem perspetivar grandes expetativas luminosas projetadas na linha do horizonte.
NOTA
(*) As incertezas por vezes desfazem-se e transformam-se em certezas. Uma viagem despreo-cupada pela Net levou-me até à localização exata das ruínas misteriosas desenhadas na capa do livro. Não são romanas nem se trata de Palmira, mas sim do que resta do velho templo persa sassânida de Taq-e Kisra. Encontra-se atualmente no Iraque, a 35 Km sudeste de Bagdad, e foi construído por Cosroes I para celebrar uma campanha contra os bizantinos em 540. Os editores das Actes Sud bem podiam ter sido mais claros na indicação precisa da ilustração DR.
Mais um autor a retenter, mercê em grande parte pelas suas palavras, curiosamente, iniciei a leitura de outro escritor referido no seu texto: Stendhal.
ResponderEliminarA foto da capa remete-nos de facto a Palmira, talvez pela atualidade a que a sua destruição pelos bárbaros lhe conferiu... Este excelente ensaio proporcionou-me uma sugestiva viagem pelos meandros da cultura, além de me relembrar a sugestão deste jovem autor que nos sugere "orientarmo-nos" neste mundo globalizado. Agradeço a partilha, Prof.!
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