19 de setembro de 2016

Ildefonso Falcones, a catedral do povo e de Santa Maria do mar

«―Esto no es una catedral ―oyeron a sus espaldas. Arnau y Joanet se miraron y sonrieron. Se volvieron e interrogaron con la mirada a un hombre fuerte y sudoroso cargado con una norme piedra a sus espaldas. ¿Y qué es?, parecía decirle Joanet sonriendo―. La catedral la pagan los nobles y la ciudad; sin embargo esta iglesia, que será más importante y más bella que la catedral, la paga y la construye el pueblo.»
Ildefonso Falcones, La catedral del mar (2006)
livros que estão particularmente talhados para viajar debaixo do braço. O tamanho pouco importa. Em período de férias, levamo-los para onde e quando queremos sem ter de dar satisfações a ninguém. Depois, abrimo-los de par em par e passeamos descontraidamente pelas histórias depositadas no seu interior. Ildefonso Falcones facultou-me inadvertidamente essa oportunidade este verão. Cruzei-me com La catedral del mar (2006) a caminho de Madrid. Antes de chegar ao terminal de Atocha, já estava entregue aos fascínios de Barcelona revelados no bestseller que viera ter ao meu encontro na pequena livraria de gare de Santa Justa de Sevilha destinada aos passageiros em trânsito ou compasso de espera. Fizera-o no momento exato determinado pelo acaso, aquele em que os mais dados aos mistérios virtuais do transcendente apostrofam de fado, fortuna, sina ou sorte. Terei sido, com toda a certeza, um leitor mais a acrescentar aos seis milhões doutros já rendidos à obra de estreia dum autor na primeira década da sua apresentação ao público. Feito este tido como ímpar e por isso mesmo comemorado agora com toda a pompa e circunstância usadas em casos que tais.

As seis centenas e meia de páginas corridas em que se espraia o fluir dos eventos convocados respeitam a linha cronológica em que ocorreram. Tudo se inicia em 1320 e termina 1384, período de tempo que abarca a construção a expensas do povo chão da basílica gótica de Santa Maria del Mar (1329-1383), o maior templo à data da cidade condal e que empresta o nome ao romance. O Principado da Catalunha transforma-se no centro catalisador de todo o relato, com um predomínio avassalador da capital e sede de cortes. Ruas e ruelas, praças e pracetas, casas e casebres, palácios e mansões, alternam entre si como cenários dos dramas vividos pelos seus habitantes. Nobres, fidalgos e arraia-miúda, cristãos, mouros e judeus, genoveses, castelhanos e outros mais. O fio condutor segue, todavia, no encalço de Arnau Estanyol, filho dum Bernat e pai dum outro, concebido como uma saga familiar, enquadrada no contexto medieval de Jaime II, Afonso IV e Pedro IV de Aragão. O conjunto dos sucessos narrados repartem-se por quatro fases de servidão a outras tantas realidades distintas ou a atos da peça em curso: a gleba, a nobreza, a paixão, o destino. No final, todos os conflitos se resolvem e abrem caminho para uma primeira sequela, já disponibilizada aos espetadores ansiosos de mergulharem de novo nos meandros labirínticos da lealdade e vingança, traição e amor, guerra e peste, criados pelo encenador consagrado das letras hispânicas atuais. E assim a história se faz novela.

Uma leitura ingénua ou ligeira dos factos poder-nos-ia levar a considerar o percurso existencial do protagonista como a dum genuíno pícaro pré-renascentista, composto no processador de texto pós-modernista por um advogado com alma de escritor nos tempos livres que a atividade forense lhe foi dando ao longo de quase cinco anos. Filho duma prostituta com fama de bruxa e dum assassino enforcado pela justiça, vê-se obrigado a trabalhar, desde muito jovem, como palafreneiro, estivador, soldado, cambista, cônsul e comerciante. Conhece a fome, os maus tratos físicos, um casamento infeliz. Para se tornar num Lazarillo de Tormes completo, só lhe faltaria trilhar os sendeiros da represália sistemática aos sucessivos volte-faces da Fortuna. Dir-se-ia estarmos na presença dum frequentador exemplar da hampa que os Séculos de Ouro peninsulares nunca reconheceriam como verosímil ou credível. A intolerância religiosa, a ambição material e a segregação social são incapazes de contagiar o herói da efabulação que, deste modo, lhe garante o estatuto inabalável de antipícaro exemplar. A sua fidelidade a Santa Maria do Mar, a cuja proteção se entregou toda a vida, garantem-lhe um final feliz, a ventura de se voltar a casar e a garantir a descendência exigida numa gesta imaginária de gente anónima a ombrear com as gestas reais de filhos-de-algo com direito a registo nas crónicas oficiais para memória futura. Em literatura como em historiografia, as linhas paralelas são as únicas que as tecem e lhes dão sentido. Estão sempre a olhar-se e nunca se tocam. Só na linha do horizonte é que se fundem. Ilusão própria dos pontos de vista de quem as observa.

2 comentários:

  1. Foi o primeiro livro que li de Ildefonso Falcones, o que levei "debaixo do braço" nas minhas férias à minha terra natal, Cabo Verde, em 2007 e onde um turista espanhol me disse, na ilha do Sal, que esse era um livro especial... Já o sabia então, embora estivesse ainda na terceira parte do livro. Espantoso, soberbo!

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  2. O nosso exemplar tem 10 anos, tê-lo-ei lido mais ou menos por essa altura, 2006/2007. Um bom romance histórico, sim senhor.

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