1 de setembro de 2016

Laura Esquível, como água para chocolate ou em ponto de rebuçado


«— ¡La verdad! ¡La verdad! Mira Tita, la mera verdad es que la verdad no existe, depende del punto de vista de cada quien.»
Laura Esquivel, Como agua para chocolate (1989)
São variados os trajetos que nos levam à presença dum livro. O acaso tem um papel muito importante neste processo de descoberta dum determinado conjunto de páginas impressas com histórias dentro. Alguém nos falou no autor ou na obra, uma visita a uma livraria, a capa sugestiva numa vitrina, uma prenda em data festiva proporcionaram-nos, em momentos diferentes, o encontro com a leitura casual e colocou o exemplar até então desconhecido nas nossas mãos. Poderia repetir muitas outras variedades de cruzamentos felizes do real e do imaginário e muitas outras ficariam por revelar. O caso concreto que a fortuna me reservou para chegar a Laura Esquível e a Como agua para chocolate (1989) foi um dos múltiplos canais temáticos de películas postas à nossa disposição pela televisão por cabo. Primeiro visionei o filme homónimo, realizado três anos mais tarde por Alfonso Arau segundo o guião da própria novelista mexicana, e só depois o procurei em formato tradicional e tamanho de bolso. Fi-lo de passagem rápida por Ayamonte, num pequeno espaço entretanto desaparecido de venda de imitações de vidas cerzidas como se fossem autênticas. Os imensos prémios literários e cinematográficos que desde então foram granjeando um pouco por toda a parte convidaram-me a repetir a visita estas férias ao bestseller traduzido para trinta e cinco idiomas e à fita campeã de bilheteiras, levando-me, ato contínuo, a sintetizar por escrito as impressões do duplo reencontro.

Novela de entregas mensais, com receitas, amores e remédios ca-seiros. Assim resumem os editores de edição por onde viajei a saga da família De la Garza que protagoniza o destino dos seus repre-sentantes fundadores, contemporâneos da Revolução Mexicana (1910-1917), relatada no trilho narrativo do realismo mágico latino-americano. A verdade da fábula remete-nos constantemente para a fantasia que cada um de nós, personagens e leitores, transporta dentro de si. De janeiro a dezembro, os modos de confecionar tor-tas, pastéis, bolos, chocolate, caldos, rabanadas, codornizes com pétalas de rosa ou guisado de peru com amêndoas e gerge-lim sucedem-se ao longo dum qualquer ano sem data exata precisa de calendário. Estão entremeadas por uma ou outra mezinha de fabrico caseiro complexo e por outras iguarias pantagruélicas de sonoridades exóticas de difícil execução por meros principiantes ou curiosos. A correspondência obrigatória entre a natureza dos produ-tos cozinhados e as festividades sazonais do momento prima pela ausência, devendo-se ao mero acaso do seu registo nos fascículos distribuídos de casa em casa, como se costumava então fazer com a literatura de cordel e se continua ainda a fazer em contextos mais populares. O tempo perde a linearidade a que estamos habituados, curva-se sobre si mesmo e dá origem a um fluir cíclico dos eventos passados e presentes se confundem entre si.

Os destinos dos heróis centrais da fábula tomam conta do relato. As receitas do livro de cozinha de Tita pontuam as etapas do seu rela-cionamento com Pedro: presenças e ausências, encontros e desen-contros, lágrimas e sorrisos, alegria e tristeza, frio e calor, paixão e ódio, amor e morte. A perceção da realidade nasce da emanação do sensorial. Como água para chocolate ou em ponto de rebuçado. Os elementos mágicos ou maravilhosos surgem a cada momento como parte integrante da normalidade quotidiana. O insólito é entendido como perfeitamente plausível num mundo pautado pela banalidade da condição humana. Tudo é possível. A verdade e a mentira depen-dem do ponto de vista de quem as sente e interpreta. Na república das letras tudo é possível e exequível. Até chamar as antigas epo-peias vindas do seio mais profundo das lendas e trazê-las ao conví-vio dos romances inscritos em folhas volantes ou encadernadas. Penélope desfazia todas as noites uma longa tapeçaria que havia te-cido durante o dia para evitar um matrimónio indesejado. Tita ocupa as noites a tecer uma longa tapeçaria para preencher o vazio da sua existência como ser condenado ao celibato. Os extremos tocam-se. Fundem-se através da poesia feita com versos-estrofes-cantos rimados de Homero e das frases-períodos-parágrafos cadenciados da prosa poética de Laura Esquível. Legado fantástico esse do aedo helénico à novelista hispânica. E assim o eixo cronológico dos factos já acontecidos e a acontecer se fundem num só para dar sentido aos que hão de vir. E assim o novo e o velho se confundem. E assim o realismo mágico da criação artística acontece.

1 comentário:

  1. Um texto admirável sobre as fantasias amorosas e gastronómicas de Tita, personagem que atrai desde logo a simpatia do espetador / leitor das suas aventuras e desventuras. Do belíssimo filme tão premiado que já vi mais que uma vez, falta-me ler o livro à espera na estante e deixar-me seduzir pela envolvência mística que a autora tão bem desenvolve.

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