« “ Sire, puisque Dieu vous a conféré cette grâce immense de vous élever par-dessus tous les rois et princes de la chrétienté à une puissance que jusqu'ici n'a possédée que votre prédécesseur Charlemagne, vous êtes sur la voie de la monarchie universelle, vous allez réunir toute la chrétienté sous la même houlette. ” || C’est en ces mots que l’archevêque de Mayence Albert de Brandebourg, oncle de Joachim-Hector, lui-même margrave et électeur de Brandebourg, accueillit Atahualpa dans le temple d'Aix-la-Chapelle, sous un immense lustre en cuivre doré, au pied des statues de saint Paul à la croix et de saint Pierre à la clé (deux idoles populaires dans ces pays), pour lui remettre solennellement les attributs de la dignité impériale. »
Laurent Binet, Civilizations (2019) pp. 274-275
A ucronia literária instala-se no momento em que os eventos narra-dos fogem à verdade histórica documentada nos anais oficiais e en-tram no universo paralelo da fantasia pura e simples da história alter-nativa, hipotética ou especulativa gizada de vez em vez pela ficção. Conjeturar, à boa maneira de George Steiner n'O transporte para San Cristóbal de A. H. (1979), a fuga de Adolfo Hitler para a floresta Amazónica após a queda de Berlim. Demonstrar, como o fez José Saramago na História do cerco de Lisboa (1989), que a cidade podia ter sido tomada por D. Afonso Henriques aos Mouros sem a ajuda dos Cruzados. Defender que D. Sebastião logrou sobreviver à batalha de Alcácer-Quibir, tal como Catherine Clément se atreveu a avançar nas Dez mil guitarras (2010).
A atração por esta modalidade poética de reescrever o percurso mile-nar dos homens parece ter conquistado a verve criativa de Laurent Binet. Após ter convertido n'A sétima função da linguagem (2015) a morte acidental de Roland Barthes num complot internacional, surge agora com um megaprojeto manipulador da realidade factual dado à luz nas Civilizations (2019). O local sai de cena e entra o global. O processo de contrafação das fontes escritas que os séculos nos legaram começa com uma saga de Freydis Eriksdottir, prossegue com o diário fragmentário de Cristóvão Colombo, amplia-se com as crónicas de Atahualpa e culmina com as aventuras de Cervantes. O caráter apócrifo de cada um destes documentos elaborados pelas diversas instâncias discursivas convocadas é claro e não merece nenhum reparo em especial. Só assim as premissas teóricas do género se concretizam e se pode contrapor o não-tempo imaginado pelo faz-de-conta ao tempo real efetivamente acontecido.
Atribuir a um romance francês um título em inglês causou-me uma certa estranheza que me levou a averiguar a causa do insólito. O mistério acaba, quando descobri que o autor se limitara a aplicar no universo das letras as regras dum jogo de vídeo criado em 1991 por Sid Meier. Nesta Civilization, a estratégia a seguir consiste em incor-porar e expandir uma civilização histórica, a fim de superar as rivais. A ideia já tinha sido esboçada em 1989 por Roberto Bolaño n´O Terceiro Reich, quando os wargames da Segunda Guerra Mundial são recri-ados pelo protagonista com os hexágonos e fichas das batalhas tra-vadas num tabuleiro. Laurent Binet vai mais longe do que o novelista chileno. Concretiza a dimensão ucrónica em toda a trama textual. A filha de Erik-o-Vermelho desiste de regressar à Escandinávia e ruma em direção a Cuba, México, Panamá e Peru. O descobridor genovês da América alcança as ilhas do mar das Caraíbas mas é vencido pelos povos locais e impedido de regressar a Castela. O Sapa Inca das Quatro Regiões atravessa o grande mar Oceano, desembarca em Lisboa e conquista o velho continente, que converte na Quinta Região do Império do Sol. O biógrafo do Don Quijote torna-se num peregrino europeu da fortuna com destino final nos territórios aztecas dos adoradores da Serpente Emplumada. A inversão surpreendente de factos notáveis ocorridos nos dois hemisfério terrestres separados pelo Atlântico não impediram a Académie française de lhe atribuir o Grand prix du roman nesse mesmo ano do lançamento da obra.
A posse dos cavalos, do uso do ferro e dos anticorpos legados pelos visitantes vikings e castelhanos desde o ano mil deram aos índios de além-mar todas as condições de invadir as terras do deus pregado, da bolacha branca e da beberagem vermelha, de derrotar sem apelo nem agravo Carlos V e Francisco I. Só D. João III e Henrique VIII sa-em mais ou menos incólumes desta mundialização de sentido ame-ríndio. A nova ordem planetária imposta pelo Filho do Sol difere pouco da que encontrou nos Países do Levante. A Inquisição dos vencidos é substituída em poucas colheitas pelas Pirâmides dos vencedores e fica tudo na mesma. O não-tempo da ucronia e o não-espaço da utopia geram todavia uma realidade alternativa decisiva nos universos das letras e das artes, revelados nas folhas que falam de Cervantes e nas pinturas mágicas de El Greco. Nesta luta de titãs regida pelas rodelas de metal e bastões de fogo, só a força livre da cultura tem o poder de resistir à força bruta das civilizações. Mensagem de esperança difícil de encontrar nas histórias acontecidas mas perfeitamente viável nas histórias imaginadas.
Muito interessante, Prof., esta ucronia literária que nos faz pensar como as idiossincrasias humanas são infelizmente tão previsíveis. Que a força da cultura encontre na realidade meios de resistir a manifestações de sub-humanos como o Trump...
ResponderEliminarAs civilizações limitam-nos a liberdade. A cultura abre-nos os horizontes da liberdade. Saibamos nós conjugar a objetividade imposta da primeira com a subjetividade voluntária da segunda. Só assim a insanidade mental de alguns senhores do mundo terá os dias contados...
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