23 de janeiro de 2020

Laurent Binet: encontros, desencontros e reencontros ucrónicos de civilizações

« “ Sire, puisque Dieu vous a conféré cette grâce immense de vous élever par-dessus tous les rois et princes de la chrétienté à une puissance que jusqu'ici n'a possédée que votre prédécesseur Charlemagne, vous êtes sur la voie de la monarchie universelle, vous allez réunir toute la chrétienté sous la même houlette. ” || C’est en ces mots que l’archevêque de Mayence Albert de Brandebourg, oncle de Joachim-Hector, lui-même margrave et électeur de Brandebourg, accueillit Atahualpa dans le temple d'Aix-la-Chapelle, sous un immense lustre en cuivre doré, au pied des statues de saint Paul à la croix et de saint Pierre à la clé (deux idoles populaires dans ces pays), pour lui remettre solennellement les attributs de la dignité impériale. » 
Laurent Binet, Civilizations (2019) pp. 274-275
A ucronia literária instala-se no momento em que os eventos narra-dos fogem à verdade histórica documentada nos anais oficiais e en-tram no universo paralelo da fantasia pura e simples da história alter-nativa, hipotética ou especulativa gizada de vez em vez pela ficção. Conjeturar, à boa maneira de George Steiner n'O transporte para San Cristóbal de A. H. (1979), a fuga de Adolfo Hitler para a floresta Amazónica após a queda de Berlim. Demonstrar, como o fez José Saramago na História do cerco de Lisboa (1989), que a cidade podia ter sido tomada por D. Afonso Henriques aos Mouros sem a ajuda dos Cruzados. Defender que D. Sebastião logrou sobreviver à batalha de Alcácer-Quibir, tal como Catherine Clément se atreveu a avançar nas Dez mil guitarras (2010).

A atração por esta modalidade poética de reescrever o percurso mile-nar dos homens parece ter conquistado a verve criativa de Laurent Binet. Após ter convertido n'A sétima função da linguagem (2015) a morte acidental de Roland Barthes num complot internacional, surge agora com um megaprojeto manipulador da realidade factual dado à luz nas Civilizations (2019). O local sai de cena e entra o global. O processo de contrafação das fontes escritas que os séculos nos legaram começa com uma saga de Freydis Eriksdottir, prossegue com o diário fragmentário de Cristóvão Colombo, amplia-se com as crónicas de Atahualpa e culmina com as aventuras de Cervantes. O caráter apócrifo de cada um destes documentos elaborados pelas diversas instâncias discursivas convocadas é claro e não merece nenhum reparo em especial. Só assim as premissas teóricas do género se concretizam e se pode contrapor o não-tempo imaginado pelo faz-de-conta ao tempo real efetivamente acontecido.

Atribuir a um romance francês um título em inglês causou-me uma certa estranheza que me levou a averiguar a causa do insólito. O mistério acaba, quando descobri que o autor se limitara a aplicar no universo das letras as regras dum jogo de vídeo criado em 1991 por Sid Meier. Nesta Civilization, a estratégia a seguir consiste em incor-porar e expandir uma civilização histórica, a fim de superar as rivais. A ideia tinha sido esboçada em 1989 por Roberto Bolaño O Terceiro Reich, quando os wargames da Segunda Guerra Mundial são recri-ados pelo protagonista com os hexágonos e fichas das batalhas tra-vadas num tabuleiro. Laurent Binet vai mais longe do que o novelista chileno. Concretiza a dimensão ucrónica em toda a trama textualA filha de Erik-o-Vermelho desiste de regressar à Escandinávia e ruma em direção a Cuba, México, Panamá e Peru. O descobridor genovês da América alcança as ilhas do mar das Caraíbas mas é vencido pelos povos locais e impedido de regressar a Castela. O Sapa Inca das Quatro Regiões atravessa o grande mar Oceano, desembarca em Lisboa e conquista o velho continente, que converte na Quinta Região do Império do Sol. O biógrafo do Don Quijote torna-se num peregrino europeu da fortuna com destino final nos territórios aztecas dos adoradores da Serpente Emplumada. A inversão surpreendente de factos notáveis ocorridos nos dois hemisfério terrestres separados pelo Atlântico não impediram a Académie française de lhe atribuir o Grand prix du roman nesse mesmo ano do lançamento da obra.  

A posse dos cavalos, do uso do ferro e dos anticorpos legados pelos visitantes vikings e castelhanos desde o ano mil deram aos índios de além-mar todas as condições de invadir as terras do deus pregado, da bolacha branca e da beberagem vermelha, de derrotar sem apelo nem agravo Carlos V e Francisco I. D. João III e Henrique VIII sa-em mais ou menos incólumes desta mundialização de sentido ame-ríndio. A nova ordem planetária imposta pelo Filho do Sol difere pouco da que encontrou nos Países do Levante. A Inquisição dos vencidos é substituída em poucas colheitas pelas Pirâmides dos vencedores e fica tudo na mesma. O não-tempo da ucronia e o não-espaço da utopia geram todavia uma realidade alternativa decisiva nos universos das letras e das artes, revelados nas folhas que falam de Cervantes e nas pinturas mágicas de El GrecoNesta luta de titãs regida pelas rodelas de metal e bastões de fogo, a força livre da cultura tem o poder de resistir à força bruta das civilizações. Mensagem de esperança difícil de encontrar nas histórias acontecidas mas perfeitamente viável nas histórias imaginadas.

2 comentários:

  1. Muito interessante, Prof., esta ucronia literária que nos faz pensar como as idiossincrasias humanas são infelizmente tão previsíveis. Que a força da cultura encontre na realidade meios de resistir a manifestações de sub-humanos como o Trump...

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  2. As civilizações limitam-nos a liberdade. A cultura abre-nos os horizontes da liberdade. Saibamos nós conjugar a objetividade imposta da primeira com a subjetividade voluntária da segunda. Só assim a insanidade mental de alguns senhores do mundo terá os dias contados...

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