4 de fevereiro de 2019

Laurent Binet e a sétima função da linguagem ou de quem matou Roland Barthes

« Néanmoins, en y réfléchissant, ou plutôt en relisant Jakobson, Simon Herzog trouve trace d'une potentielle septième fonction, désignée sous le nom de " fonction magique ou incantatoire ", dont le mécanisme est décrit comme " la conversion d'une troisième personne, absente ou inanimée, en destinataire d'un message conatif " Et Jakobson donne comme exemple une formule magique lituanienne : " Puisse cet orgelet se dessécher, tfu tfu tfu tfu ". Ouais ouais ouais, se dit Simon. »
Laurent Binet, La septième fonction du langage (2015)
Regressei inesperadamente ao meu curso de letras quando entrei de supetão no universo romanesco de Laurent Binet, plasmado no meio milhar de páginas d'A sétima função da linguagem (2015), exercício criativo logo galardoado com os Prix Interallié e Roman Fnac. A semiótica e a linguística irrompem de roldão nas primeiras linhas da trama e fazem-nos companhia até ao derradeiro ponto final. Pelo caminho, ainda dão as mãos em largas e rasgadas digressões à literatura, filologia, retórica, música, arte, cinema, história, política, ciência e comunicação em geral. Os grandes vultos da cultura universitária francesa ou a ela ligada nas vésperas da eleição de François Mitterrand como presidente da república e do render da guarda de Giscard d'Estaing no Palácio do Eliseu dão um ar solene aos atos relatadosMichel Foucault, Jean-Edern Hallier, Bernard Henry-Lévy, Julia Kristeva, Philippe Sollers, Louis Althusser, Jacques DerridaHélène CixousUmberto Eco ou John Searle são só alguns dos nomes das personalidades referidas e convertidas em maior ou menor grau em personagens da intriga, centrada na morte de Roland Barthes a 21 de fevereiro de 1980, vítima dum atropelamento aciden-tal ou dum bem orquestrado complot internacional com implicações imprevisíveis na ordem social da época.

Depois de ter estado cerca de dois anos em fila de espera para ser lido e quase outros tantos para ser comentado, ficou-me a vontade de partir à descoberta da obra já publicada deste jovem inventor de histórias dentro da história ou de aguardar pacientemente que novos títulos sejam entretanto disponibilizados nos locais habituais, para desfrute de todos aqueles que os souberem apreciar. O desejo de fazer anotações sem fim a cada passo foi vencida pela vontade de fruir devidamente o prazer do texto sem interferências académicas inoportunas. Ultrapassados os impulsos irresistíveis de percurso, fixei-me na estrutura genérica seguida pela fábula, toda ela ancorada nos parâmetros habituais do romance policial clássico com final clarificador de todos os enigmas em jogo. Tzvetan Todorov (também ele parte integrante do elenco intelectual citado) incluí-lo-ia nos domínios fantásticos do estranho puro ou do insólito explicado por meios naturais. Os próprios protagonistas de serviço, Jacques Bayard e Simon Herzog, são retratados como caricaturas acabadas do inspetor Sherlock Holmes e do Dr. John H. Watson, dados à luz por Sir Arthur Conan Doyle. Chamemos-lhe pastiche literário ou thriller desconcertante, se preferirmos. A ironia-crítica-sátira emprestada à investigação impediriam outras classificações alternativas que se afastassem minimamente dos meandros da paródia bem humorada.

A sétima função da linguagem funciona na intriga como um acréscimo às restantes seis teorizadas por Roman Jakobson nos Ensaios de linguística geral (1973). Assim, para além das emotiva-apelativa do eixo da subjetividade, das referencial-fática-metalinguística do eixo da objetividade, e da poética formada na cruzamento dos dois eixos referidos, haveria ainda que contar com uma suplementar, difícil de localizar no esquema original e que teria o poder encantatório e manipulador da comunicação humana. Roland Barthes estaria na posse dum documento com a chave de acesso a essa capacidade retórica de convencer infalivelmente os outros da verdade duma qualquer mensagem. A razão da sua eliminação física do mundo dos vivos estava encontrada e com ela o leitmotiv que animaria todo o relato. O faz-de-conta inventado a cada momento pelas poéticas da ficção e filosofias dos símbolos entram em cena. Os atores pisam as ribaltas montadas em Paris, Bolonha, Ithaca, Veneza e Nápoles, num drama repartido por cinco atos e um epílogo. Ocasião, também para atualizar quanto baste a hipótese da ucronia literária definida com precisão por Umberto Eco n'«Os mundos da ficção científica», incluído em Sobre os espelhos e outros ensaios (1985), i.e., de imaginar que os eventos reais do passado ocorreram de modo distinto, tornando as liberdades verbais urdidas na textura narrativa credíveis e aceitáveis.

O jet set de individualidades universalmente conhecidas levadas do mundo exterior para o interior dum romance ganham uma nova vida. Coincidem nos nomes mas distinguem-se em todos os feitos que lhes são atribuídos. Continuam a revivê-las sempre que são atualizadas pela leitura. Ficam congeladas nas páginas dos livros que as contêm. Admirável destino destes seres que podem aspirar à eternidade. Só terão de pertencer a uma obra imortal a que todos os autores podem aspirar e nenhum tem a capacidade de confirmar. Pessoalmente, atrevo-me a antever um futuro promissor na república das letras, assim a vivacidade já manifestada na escrita se mantenha sem falhas e a nossa capacidade de decifração se não esgote. Numa época em que as humanidades andam pela rua da amargura e as universidades já não são o que eram, torna-se um pouco arriscado que a erudição académica consiga trilhar com sucesso as veredas sinuosas da criação diegética. Laurent Binard que se cuide e trate de se adaptar às novas retóricas do terceiro milénio. É que nos dias que correm as eleições presidenciais fazem-se mais à custa das fake news virtuais do que das funções restritas ou ampliadas da linguagem por muito fascinantes que sejam ou pareçam ser.

3 comentários:

  1. Uma recessão exigente para quem como eu se identifica como uma leitora descomprometida e sem pressa. Muito bom.

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    1. O romance funciona quase como uma síntese bem conseguida e divertida do mundo fascinante da linguística. Pode assustar um pouco os leigos, mas acaba por funcionar em termos das histórias contadas. O mais extraordinário é dever-se à pena dum muito jovem e promissor escritor. Magistral...

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  2. Um ensaio literário de peso que os teus alunos e colegas saberão apreciar! Para uma leiga na matéria, espero poder desfrutar das histórias contadas, bem cimentadas no relato singular que transcreveste.

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