9 de setembro de 2020

Olga Tokarczuk: histórias filosóficas e mitológicas de Outrora e outros tempos

"Czas Prawieku Prawiek jest miejscem, które leży w środku wszechświata. Gdyby przejść szybkim krokiem Prawiek z północy na południe, zabrałoby to godzinę. I tak samo ze wschodu na zachód. A jeśliby kto chciał obejść Prawiek naokoło, wolnym krokiem, przyglądając się wszystkiemu dokładnie i z namysłem - zajmie mu to cały dzień. Od rana do wieczora."
O tempo do Primitivo Primordial (Prawieku Prawiek ⋍ Outrora) é um lugar que se encontra no centro do universo. Assim começa em tradução literal quase literária Olga Tokarczuk o Outrora e outros tempos (1992), imagem clássica para indicar que a Terra é redonda e que em qualquer ponto em que nos posicionarmos, estaremos em simultâneo no meio e na periferia de tudo o que existe ao alcance da nossa vista, incluindo a vastidão cósmica que nos envolve, foco de convergência equidistante das extremidades do princípio e do fim. Prawiek|Outrora é uma aldeia fictícia, perdida num ambiente rural verosímil recente, mas eivado até à medula de pequenas/grandes fantasias gizadas no imaginário coletivo ancestral do povo polaco.

Apesar de se tratar dum lugarejo de faz-de-conta romanesca, seria errado pensar achar-se totalmente perdido no meio do nada dum qualquer mapa. As coordenadas geográficas são dadas com todo o pormenor logo no capítulo inicial, «O tempo de Outrora». A estrada de Tasków a Kielce limita o palco a norte e a vila de Jeszkotle a sul, colocando de imediato no fulcro de toda a fábula no sudoeste da Polónia a poucos quilómetros da raia alemã. A oeste são referidos uns prados ribeirinhos, algumas florestas e um palácios; enquanto a leste corre o rio Branco que depois se une ao rio Preto para formar o rio Rio. Tudo minúcias de pouca monta que para o caso tanto faz. Mais pertinente será, porém, estar cada um dos quatro pontos cardeais defendido pelo seu arcanjo para proteger os habitantes e visitantes do risco de infringirem as regras de conduta estabelecidas. Rafael o perigo da ansiedade, Gabriel o desejo da posse, Miguel a tentação do orgulho e Uriel a exibição de conhecimentos e saberes.

Desde os primeiros parágrafos, são lançadas pistas simbólicas, onde se adivinha  o rumo que o tecido verbal lhe dará daí para a frente. Podemos arrolá-los na mitologia cristã e folclórica, tal como a crença em anjos e demónios, almas penadas e lobisomens; na filosofia baseada nas doutrinas transcendentes e imanentes de explicar a essência de Deus; na História recente da Polónia, ao longo de três gerações que sofreram duas Guerras Mundiais, a Ocupação Nazi, a Invasão Russa e muitas crises de permeio. Um texto do Estranho, para usar um termo consagrado por Todorov*, o que, por vezes, nos conduz a outros modos de hesitação do Fantástico e a perguntar-nos até que ponto não estaremos no domínio do Maravilhoso ou muito próximo de o atingir. A presença ainda que discreta do Realismo Mágico latino-americano, a sugerir que a morte e a vida podem ser encaradas como um sonho, e que só no pós-vida é que os mortos recuperam a lucidez e descobrem os mistérios da vida.

A reforçar esta estrutura do sumir/surgir a existência de pessoas, animais, objetos, ideias, memórias que habitam os outros tempos de Outrora, encontram-se os cruzamentos de fronteiras que definem o dia/noite a guerra/paz, o caos/ordem, o tudo/nada, o real/imaginário. Dicotomias que nos remetem para uma teoria mais obscura dos números, aquela que Pitágoras considerava a essência de todas as coisas, o começo de tudo, o primitivo primordial de Prawiek. Os 84 tempos do romance se podem decompor em 2²x3x7, tal como as 128 saídas do Ignis Fatuus, i.e., Jogo instrutivo para um jogador se podem reduzir a 2. Quer dizer, tudo números primos ou cabalísticos usados à exaustão ao longo de todo o relato para nos dar a visão dum microcosmos que cumpriu a sua missão de ser e de estar. São os 2 rios de cores antagónicas que se fundem e passam a 3, são a sucessão dos ciclos de 7 dias da criação desse falso universo como se fosse genuíno. É verdade que o grande labirinto circular do jogo aludido afirma que esse ato etiológico assenta em 8 mundos, mas em que um deles corresponde a um não-tempo/não-espaço onde Deus ainda não existe. Esta ampliação de uma etapa suplementar documenta também o esquema sistémico explicitado de ser o 2 o período de descanso do 4 e que a tétrada tem a tendência de se tornar dualidade, exemplificado na série de 31 coisas quádruplas arroladas, tantas quantos os dias dos 7 meses maiores do ano.

Muito mais haveria a dizer sobre a imaginação narrativa de Olga Tokarczuk, que lhe valeu em 2018 o mais ambicionado prémio literário a nível global, instituído por Alfred Nobel em 1895 e atribuído pela Academia Sueca desde 1901. A 15.ª mulher a receber a medalha de ouro num total de 116 laureados. Acedi a este texto pela cortesia da MB & do LC, amigos e colegas de sempre que mo ofereceram numa visita por altura do lançamento da tradução portuguesa entre nós. Uma forma singular de celebrar o cruzamento de fronteiras como forma de vida. 

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Paris: Le Seuil, 1970.

2 comentários:

  1. Análise exaustiva a uma leitura intrigante!
    Só tomei contacto com a escritora após a atribuição do Nobel.

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  2. Que maravilhoso mágico tão sugestivo, Prof! Um texto que acende a vontade de conhecer imediatamente a escrita da autora! Obrigada por esta bela partilha!

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