15 de dezembro de 2021

O poder imortal da música

     José Saramago - As intermitências da morte     

Quando o amor derrota a morte

Eram onze horas quando a campainha da porta tocou. Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites, respondeu o músi-co, esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a glote. Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não lhe explo-disse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que se tivesse ido embora, disse, Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me comprometi. Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou. Sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor. Di-lo a sério, É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir, prin-cipalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira, Tem ali um piano. Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violon-celo, E outra cousa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão, Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suíte número seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e começa a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, uma passa-gem no prelúdio em que tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando chegar, disse a mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovich. O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovich, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovich, esta sala de música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram as mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procu-ra de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que a morte podia destruir. Não fica-ram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem com-preender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.

José Saramago, As intermitências da morte. Lisboa: Caminho, 2005, pp. 212-214

2 comentários:

  1. Quando li o livro, achei extraordinário este enredo romântico, sendo Saramago um homem de semblante sempre tão sério. Ou seja, conseguiu mais uma vez surpreender-me com a sua criatividade, ao abordar o tema da morte com tanta poesia.

    ResponderEliminar
  2. Magnífico!
    Não li ainda o livro, mas despertou-me uma imensa vontade.
    Obrigada...

    ResponderEliminar