Jacques-Louis David «La mort de Socrate» |
...To die, to sleep, | No more; and by a sleep to say we end | The heart-ache, and the thousand natural shocks | That flesh is heir to: 'tis a consummation | Devoutly to be wished. To die, to sleep; | To sleep, perchance to dream...[...Morrer, dormir, | não mais; dizer que rematamos com um sono a angústia | E as mil pelejas naturais herança do homem | Morrer para dormir: é uma consumação | Que bem merece e desejamos com fervor. | Dormir, sonhar talvez...]William Shakespeare, Hamlet, Prince of Denmark (1599-1602: III, ii, 62-68)
As sete vidas dos gatos
Morri sete vezes e ressuscitei outras tantas, mas sempre de modo diferente. Tantas quanto as sete vidas dum gato. Estou a falar em sentido figurado, está bem de ver. Se o fizesse em sentido próprio, a frase transformar-se-ia numa não-frase de sentido vazio ou absurdo. Aliás, em bom rigor e perfeito juízo, nenhuma destas frases teria sido escrita ou sequer pensada. Se tivesse dito adormeci profundamente e despertei sempre duma anestesia geral com sensações diferentes, talvez o risco de insanidade mental desaparecesse, apesar de cair na banalidade de converter o sono num simulacro de morte efémera ou de ressurreição assegurada, o que teria as suas vantagens. Daria para refletir sobre a falência irreversível do livre-arbítrio no que à morte se refere e nas formas possíveis de a antecipar através do suicídio programado ou da eutanásia solicitada, de a imitar através dum anestésico cirúrgico ou da hipnose terapêutica, de a experimentar através do desmaio acidental ou do coma provocado.
A perfeição só acontece uma vez na vida e chega inexoravelmente com a morte. É irrepetível e ninguém escapa. Se tudo já está feito não há mais nada a fazer. E como ato singular e definitivo que é, não penaliza nem premia. Apaga tudo à sua volta para todo o sempre. É que no nosso mundo real a consciência de se estar vivo exclui liminarmente a consciência de se estar morto. Constitui um autêntico absurdo da existência humana, tal como Albert Camus a seu tempo defendeu n´O mito de Sisifo. Ensaio sobre o absurdo (1942), ter a veleidade de aspirar à experiência da morte depois da vida se ter ido de vez é uma ilusão que nem chega a ser desfeita. Seria perfeitamente infrutuoso. Ao invés do que afirma o protagonista da tragédia de William Shakespeare, Hamlet, Príncipe da Dinamarca (1599-1602), morrer e dormir não são a mesma coisa, afastando assim de vez a hipótese dramática do sonho ligeiro ou do pesadelo tenebroso. Do mal o menos. Nem angústia chega a ser.
A pena de morte foi abolida de Portugal em 1867, tal como a pena de prisão perpétua, ambas ignóbeis, por impedirem a real reabilitação do condenado. A primeira, por substituir a punição merecida por uma benesse imerecida do criminoso dada pela morte que tudo apaga; a segunda, por criar um novo suplício de Tântalo ou de morte em vida do proscrito da sociedade que lhe é vedada para sempre. Ironia trágica e violência sádica aplicadas em nome da justiça, a dar fé na probidade da sentença, o que nem sempre se verifica. Como a votação final da lei da eutanásia na Assembleia da República foi adiada para depois das eleições presidenciais, teremos ainda de aguardar que o inquilino reeleito do Palácio de Belém proceda com toda a celeridade à promulgação da despenalização da morte medicamente assistida – caso venha a ser aprovada como se espera* –, substituindo duma vez por todas o sofrimento injusto imposto pela matriz judaico-cristã da distanásia e devolver o livre-arbítrio a cada um de nós.
HYPNOS & THÁNATOS Carrying the body of Sarpedon from the battlefield of Troy Detail from an Attic white-ground lekythos, ca. 440 BC. [The British Museum - London] |
Um texto magnífico, Prof.! Reflete bem os nossos tempos em que, além de vermos amigos e conhecidos da nossa idade a desaparecerem, ouvimos também falar da morte diariamente em cenas televisivas, confrontando-nos com a inexorável certeza da nossa própria morte, quiçá a bater-nos à porta ainda mais cedo... Diz Vergílio Ferreira que é a eternidade a sair do nosso interior, o desmentido de que não morremos. Desconhecer se existe algo após-morte torna-se uma questão existencial, mas a gente aprende a não ter medo da morte, a encara-lá como parte da nossa vida. Ter assistido a mortes angustiantes, sem sinal da perfeição do nosso fim como humanos, convenceu-me que temos o direito de morrer com dignidade se assim o desejarmos. Que a lei sobre a despenalização da morte assistida seja finalmente aprovada para nos reconhecer por fim esse direito.
ResponderEliminarÁmen. Assim seja. Na minha passagem por hospitais, convivi com a dor, a doença e o desaparecimento. A minha morte não me incomoda. Trata-se dum apagamento sem retorno. A minha não-crença no além deu-me esse ensinamento há muito tempo. Não desejo antecipá-la mas satisfaz-me saber que a tenho à minha mão como solução extrema futura. Gosto da vida e das pessoas que me rodeiam. Sinto-me feliz por ter visto as minhas filhas crescerem. É uma felicidade ver o meu neto a amadurecer todos os dias, a ganhar memórias, que me guardarão dentro de si pela vida fora, tal como faço com todos aqueles que partiram antes de mim e me ajudaram a ser o que sou hoje. Os meus pais, os meus avós, os meus tios e tias, os meus amigos. Obrigado pelas palavras sempre bem escolhidas da tua reflexão. Dá-me força e motivação para continuar.
EliminarMagnífico. Ideias, forma, tudo - magnífico. Mas, se também acho a pena de morte ignóbil, não o faço pelas mesmas razões que tu - acho que ninguém tem sobre o outro esse poder supremo de decisão, essa anulação de qualquer vontade, esperança, arrependimento, essa nulificação da ideia mesma de justiça humanista.
ResponderEliminarCompletamente de acordo quanto à morte assistida. Mas não vejo a pena de morte como uma benesse dada "pela morte que tudo apaga". O teu texto é magnífico, magnífico. É bom ler as pontes que foste tecendo, com tanta felicidade argumentativa e estilística, entre planos tão diferentes.
A ideia também é essa. Ninguém tem o direito de tirar a vida a outrem como fim punitivo. No caso da morte assistida é o direito de quem a pede que prevalece. É o livre-arbítrio que prevalece.
EliminarConcordo com tudo o que dizes e subscrevo. Utilizo benesse no sentido de imagem, de metáfora da morte (talvez exagerada), de reforçar a ideia de falência da punição pretendida ou do arrependimento comprovado. Obrigado pelas palavras bonitas e motivadores que escreves sempre a propósito das minhas escritas. Esta foi muito pensada no hospital, após as anestesias a que fui submetido. Acordei sempre com muitas dores (diria insuportáveis), mas afastei sempre a ideia da morte desejada.
«ter a veleidade de aspirar à experiência da morte depois da vida se ter ido de vez é uma ilusão que nem chega a ser desfeita.» Bem dizia um professor meu de Psicanálise, a morte é sempre a dos outros.
ResponderEliminarGrande verdade! A punição, se ela existe, é sempre para quem fica...
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