12 de outubro de 2020

Em demanda da Atlântida platónica

               FRESCO DE AKROTIRI - SANTORINO               

«Entrada dum navio num porto» (séc. XVI AEC)

«Muitos e grandes foram os feitos da vossa cidade que são motivo de admiração nos registos que deles aqui ficaram. Mas, entre todos eles, destaca-se um em grandeza e beleza; os nossos escritos referem como a vossa cidade um dia extinguiu uma potência que marchava insolente em toda a Europa e na Ásia, depois de ter partido do oceano Atlântico. Em tempos, este mar podia ser atravessado, pois havia uma ilha junto ao estreito a que vós chamais Colunas de Héracles [...] Posteriormente, por causa de um sismo incomensurável e de um dilúvio que sobreveio num só dia e numa noite terríveis, toda a vossa classe guerreira foi de uma vez engolida pela terra, e a ilha da Atlântida desapareceu da mesma maneira, afundada no mar.»
Platão, Timeu (24e;25c-d)

Fábula- Mito - Lenda - História - Alegoria...

1. Civilização Micénica
No final do séc. XIX, o empresário alemão Heinrich Schliemann partia para a Anatólia, na Turquia, em busca da cidade de Troia, tomada e destruída pelas forças aliadas gregas em meados do séc. XIII AEC, diz-se que com um exemplar da Ilíada de Homero debaixo do braço em jeito de guia. Estava convicto que a encontraria subterrada em Hissarlik, um montículo de 28m de altura, situado a 6,5km da embocadura dos Dardanelos. Iniciou os trabalhos de escavação em 1870 e rapidamente encontrou a partir dos 7,5m de profundidade sucessivas camadas sobrepostas de ruínas urbanas, entre as quais a da milenar Ílion do rei Príamo e da rainha Hécuba, dos príncipes Heitor e Páris, de Cassandra, de Eneias e Anquises, de Helena de Argos e de tantos outros heróis e heroínas que têm povoado o nosso imaginário ao longo dos tempos. Identificaram-se atualmente onze povoações erigidas naquele local, entre 3500 AEC e sécs. XIII-XIV EC, incluindo a Troia VIIa (c. 1300-1200 AEC), subjugada e aniquilada por Agamémnon, Menelau, Aquiles, Ajax, Ulisses e demais invasores aqueus descendentes de Heleno. Os sonhos de infância do autodidata germânico não se quedaram por aí. No decorrer dessa década prodigiosa e na seguinte, ainda explorou outros assentamentos arqueológicos aqueus, tendo posto a descoberto os restos de Micenas, no Peloponeso, centro da civilização micénica dos Aqueus da Idade do Bronze, bem como Tirinto na Argólida e Orcómeno na Beócia. E assim do mito se fez lenda e desta se fez história.

2. Civilização Minoica
Ignoro se o arqueólogo britânico Sir Arthur John Evans levava consigo a Descrição da Grécia de Pausânias, a Biblioteca Histórica de Diodoro da Sicília, a Geografia de Estrabão ou algum outro texto da literatura clássica greco-romana, quando partiu para a ilha de Creta, tida como a terra-mãe de Zeus e dos deuses do Olimpo, para localizar os vestígios ali deixados pelos povos proto-helénicos, com um destaque especial para as pedras-sinetes ou pedras-de-leite, pequenas peças de olaria gravadas numa escrita indecifrada e usadas na origem como marcas pessoais dos seus donos e depois como amuletos mágicos pelas mulheres em período de gestação. Sabemos porém ser um apaixonado convicto e confesso das lendas labirínticas do Minotauro, de Pasífae e do culto do touro, de Teseu e Ariadne, de Dédalo e Ícaro, de Deucalião e Idomeneu. Segundo testemunho do próprio explorador, o primeiro objetivo que o levara para aquelas paragens fora a descoberta da cidade do Rei Minos e do lendário palácio ali construído, que acaba por encontrar em Knossos, corria então o ano de 1900. A Civilização Minoica, como passou a ser designada, acabava de renascer nesse momento, a par do interesse crescente pelo seu percurso milenar até à data ignorado de todos. A queda abrupta das cidades cretenses continua a ser um dos grandes mistérios por desvendar dos nossos dias. Diz-se ter sido causada pela erupção vulcânica ocorrida na ilha de Santorini por volta de 1400 AECE mais uma vez do mito se fez lenda e desta se faz história.

3. Civilização Atlântida
Muitos têm sido os herdeiros da Civilização Atlântida. Todos têm falhado nas suas pretensões por um motivo ou por outro. É que ao invés de Troia e Knossos, a grande ilha-continente descrita por Platão no Timeu e no Crítias desapareceu do dia para a noite no meio do Atlântico sem deixar atrás de si pedra sobre pedra que nos possa assegurar a sua real existência. A dúvida continua instalada a dividir as mais diversas opiniões. Dizem uns que a Atlântida é uma ficção, uma alegoria, uma fábula que não deve ser levada muito a sério para além da sua dimensão filosófica, duma sociedade perfeita que caiu no pecado da perversidade e foi castigada pelos deuses que a haviam fundado. Dizem outros que a Atlântida existiu mesmo e mais tarde ou mais cedo há de ser encontrada. Dizem alguns ainda que já foi identificada e até a colocam num mapa. Só falta haver um consenso destes últimos em situá-la num mesmo ponto. Superar o problema do espaço e do tempo. Comprovar que o cataclismo se deu 9600 anos AEC num local situado para além das Colunas de Hércules. Tarefa difícil, a que Akrotiri e Tenochtitlán, entre muitas outras, não satisfazem nem de perto nem de longe. É bem verdade que quem conta um conto acrescenta um ponto, pelo que o relato do sacerdote egípcio de Saís fez a Sólon, que o confiou a Drópides, e este ao filho, avô de Crítias, que depois o revelou nos diálogos platónicos referidos até pode ter um pouco de verdade no meio de muita fantasia. E desta feita o mito se fez lenda à espera de se fazer história...

Hernán Cortes, Praeclara Fernandi epistola 
(Nuremberg, 1524)

5 comentários:

  1. Tão bem que soube ler o seu texto, ler sobre a antiguidade clássica, especialmente depois de passar a manhã a ouvir explicações sobre procedimentos tributários, caducidades, prescrições, interrupções, fundamentações, enfim, sobre o direito fiscal português. Obrigada, mesmo.

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    1. Ainda bem que gostou do meu texto sobre os mitos e lendas da antiga Grécia. Acredito que os assuntos tratados lhe tivessem amenizado as ideias cheias de arrazoados teórico-práticos de direito fiscal. Ao escrever sobre estas temáticas, volto a sentir-me um professor de cultura literária que por força das circunstâncias deixei de ser há um par de anos. Obrigado digo eu.

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  2. Que texto inspirador, Prof., que bem nos mostra o fio condutor de mitos e lendas à história provada. É notável a persistência destes homens, que transformam uma utopia em realidade lutando pelo "sonho que comanda a vida", trazendo à luz do dia as lições da história antiga séculos passados... Obrigada, pela partilha!

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    1. É bom viajar pelos mitos, lendas e história, as fontes primeiras da literatura.

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  3. Adorei, Artur!
    " do mito se fez lenda e desta se fez história "; " do mito se fez lenda e desta se faz história"; "do mito se fez lenda, à espera de se fazer história ' - uma gradação muito interessante!

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