6 de maio de 2019

Luís Osório, a queda dum homem num sonho alheio

«Tinha rituais, planos de fuga, pequenas perversidades. Planeava men-tiras, assustava-os com a tristeza, pedia-lhes comprimidos e uma rápida que não desejava. Aprendera que a incredulidade repelia, impossível de esquecer a cara dos pais depois de lhes ter confiado que escrevia todos os dias romances dentro da cabeça. Fora a primeira e a última vez que lhes confessara alguma coisa, não repetiu o erro uma segunda vez. Ti-nha rituais que a defendiam tanto dos vivos como dos seus persona-gens. Não podia desiludir uns com a esperança nem iludir os outros com falsas promessas; à família oferecia pequenos motivos para não desisti-rem dela e aos que inventava vidas sempre incompletas, um excelente pretexto para a eles voltar. Vivia entre dois mundos. E não suportava a ideia de ficar presa a qualquer um deles.»
Luís Osório, A queda de um homem (2017)
Tudo se permite sem reservas, tudo se explica sem limites, tudo cabe sem resistência na órbita natural do onírico. É que, no sonho, na loucura e na droga, nada de sobrenatural se produz porque não se produziu coisa nenhuma. O inverosímil perde a sua carga negativa e torna-se verosímil, o real e o imaginário dão livre curso ao cruzamento incessante dos fios da trama com os fios da urdidura e a fábula surge. Assim se tece o fantástico-estranho, género teórico concebido pelo estruturalista búlgaro naturalizado francês Tzvetan Todorov na Intro-duction à la littérature fantastique (1970), assim se parece desenvol-ver o primeiro romance dado à estampa por Luís Osório, A queda de um homem (2017).

Dizem as leis da física que nos regem ser impossível duas pessoas sonharem simultaneamente o mesmo sonho. A menos que essa manifestação do inconsciente individual produzida durante o sono seja viabilizada pela ficção. Nessas circunstâncias, todas as histórias narradas são possíveis, porque a criatividade faz parte da natura criada pela cultura. Afastadas ficam as ilusões provocadas pelo acaso ou pela fraude, descartadas ficam também os efeitos psíquicos causados pela loucura ou pela droga. Tudo depende das pistas, indícios ou sinais fornecidos pelo autor, faça-o ele dum modo mais ou menos implícito ou a resvalar para o explícito.     

A protagonista Prima sonha os sonhos do protagonista Primo. Atrai-o para a trama dum dos romances que tinha o hábito de escrever todos os dias dentro da cabeça. Imagina a sua morte no decorrer da intriga para assim se libertar dum rival potencial e o substituir no projeto messiânico de salvar o mundo. Tudo mentira afinal, como é usual acontecer na ficção. Ignoramos os seus nomes e dos restantes in-tervenientes da confabulação mental. Tudo se passa como se esti-véssemos num conto infantil, onde as personagens são identificadas através das suas particularidades específicas de heróis e heroínas, de aliados e rivais.

A queda anunciada no título decorre no interior dum comboio fantas-ma que percorre uma rota desconhecida rumo a um destino incerto, qual Nave de Loucos ou Barca de Caronte. Neste último caso, o vendedor de botões de punho até pode ser confundido com o barqueiro de Hades, aquele que conduz os passageiros involuntários numa derradeira viagem para o Tártaro, na outra margem do Estige e do Aqueronte, na fronteira mítica da vida e da morte. Este o cenário escolhido pelo emissor externo do relato para pôr a nu este nosso mundo contemporâneo em que vivemos, onde a esperança de sobrevivência se encontra mergulhada num universo de sombras, decadência e amoralidade.

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