«Considerai, portanto, os caminhantes como seres demitidos, como seres de fraca humanidade. Olhai-lhes para os pés e não vereis senão as grossas crostas defensivas, não vereis senão inchaço e lama. Alguma vez terão dançado aqueles pés, alguma vez se deitaram em mantas de algodão, alguma vez foram, sequer, beijados?»Hélia Correia, Um bailarino na batalha (2018)
O historial dos grandes sistemas literários fundadores diz-nos que os seus primeiros passos se deram no seio dos textos versificados, para desse modo suprir a inexistência duma escrita funcional precisa de registar a língua oral utilizada na composição do efémero e, assim, garantir uma imortalidade apetecida nem sempre merecida. Entre nós tudo começa com as cantigas trovadorescas medievais a preceder as canções palacianas renascentistas e todos os demais cantos rimados de matriz variável que se lhes seguiram. A admissão de pleno direito dos textos prosificados no universo parnasiano das letras dá-se em data relativamente tardia, quando as crónicas e cronicões primitivos se transformam paulatinamente nos contos, novelas e romances que até nós chegaram. O desvio à linguagem rotineira do dia-a-dia ganha terreno e a prosa poética da ficção surge no horizonte a ombrear com a poesia integral da lírica.
Hélia Correia reúne em si a capacidade de se expressar com idêntica mestria criativa tanto num campo genérico como no outro. É o que acontece com Um bailarino na batalha (2018), o seu mais recente relato de dimensão épica com ressonância trágica. Fá-lo em estrofes de verso único e várias linhas de texto corrido com um epílogo rimado ou em parágrafos dialogados/monologados de dimensão variada. Centra-o na temática intemporal que tem movido o ser humano ao longo do seu devir existencial, na qualidade de homo viator em busca dum paraíso perdido ou por achar. Uma qualquer terra prometida pródiga em leite e mel ou dum almejado eldorado cheio de delícias e riquezas. Esse país de utopias possíveis até pode dar pelo nome de Europa, se o herói coletivo que o pretende alcançar for oriundo – como é o caso – dum país em guerra situado no outro lado do mar, dum espaço de gentes sem pátria, dum mundo sem rei nem roque e com todo um deserto por atravessar.
Cenas pungentes destes nossos tempos que os jornais televisivos banalizaram nas suas transmissões diárias em horário nobre. O cheio de luz, a sempre bela, o primeiro raio da manhã, o de pouca estatura, o que se transformou, o afugentador de serpentes, os sem-família, os eunucos desistentes da virilidade sem semente para dar, as mulheres veladas e não-veladas com o manto da decência, os caminhantes anónimos ou com direito a nome e epíteto, novos e velhos, dançam a dança da supervivência nómada sem saber dançar, pesados como pedras, caminham em direção ao grande lago de água salgada que nunca chegam a vislumbrar. Naufragam na margem meridional duma terra de areias cinzentas sem lugar para a esperança e duma memória condenada ao esquecimento. Peregrinos errantes sem destino certo a fingir que têm uma história para contar e um público interessado em ouvi-la.
A sonoridade dramática da Odisseia homérica e do Êxodo bíblico ecoa nas páginas reais desta peregrinação atual protagonizada por pessoas concretas como todos nós. Só que no final desejado da viagem rumo à paz universal entre os homens não haverá nenhum lugar santo ou de veneração a esperá-los, nenhuma terra rica e generosa a recebê-los, nenhum jardim de deleites mil a premiá-los pelo esforço despendido. Os cavalos do Mediterrâneo, nem bravios nem secretos, passam pela vida rumo à linha de abate. Indiferentes. Dançam na guerra da sobrevivência com a mesma delicadeza e elevação de Nijinsky. Não sabem o que é a morte nem a temem. Caem na poeira da lide sem produzir um só grito. Silenciosos. Como bailarinos na batalha. E delicadamente a história acaba.
Hélia Correia reúne em si a capacidade de se expressar com idêntica mestria criativa tanto num campo genérico como no outro. É o que acontece com Um bailarino na batalha (2018), o seu mais recente relato de dimensão épica com ressonância trágica. Fá-lo em estrofes de verso único e várias linhas de texto corrido com um epílogo rimado ou em parágrafos dialogados/monologados de dimensão variada. Centra-o na temática intemporal que tem movido o ser humano ao longo do seu devir existencial, na qualidade de homo viator em busca dum paraíso perdido ou por achar. Uma qualquer terra prometida pródiga em leite e mel ou dum almejado eldorado cheio de delícias e riquezas. Esse país de utopias possíveis até pode dar pelo nome de Europa, se o herói coletivo que o pretende alcançar for oriundo – como é o caso – dum país em guerra situado no outro lado do mar, dum espaço de gentes sem pátria, dum mundo sem rei nem roque e com todo um deserto por atravessar.
Cenas pungentes destes nossos tempos que os jornais televisivos banalizaram nas suas transmissões diárias em horário nobre. O cheio de luz, a sempre bela, o primeiro raio da manhã, o de pouca estatura, o que se transformou, o afugentador de serpentes, os sem-família, os eunucos desistentes da virilidade sem semente para dar, as mulheres veladas e não-veladas com o manto da decência, os caminhantes anónimos ou com direito a nome e epíteto, novos e velhos, dançam a dança da supervivência nómada sem saber dançar, pesados como pedras, caminham em direção ao grande lago de água salgada que nunca chegam a vislumbrar. Naufragam na margem meridional duma terra de areias cinzentas sem lugar para a esperança e duma memória condenada ao esquecimento. Peregrinos errantes sem destino certo a fingir que têm uma história para contar e um público interessado em ouvi-la.
A sonoridade dramática da Odisseia homérica e do Êxodo bíblico ecoa nas páginas reais desta peregrinação atual protagonizada por pessoas concretas como todos nós. Só que no final desejado da viagem rumo à paz universal entre os homens não haverá nenhum lugar santo ou de veneração a esperá-los, nenhuma terra rica e generosa a recebê-los, nenhum jardim de deleites mil a premiá-los pelo esforço despendido. Os cavalos do Mediterrâneo, nem bravios nem secretos, passam pela vida rumo à linha de abate. Indiferentes. Dançam na guerra da sobrevivência com a mesma delicadeza e elevação de Nijinsky. Não sabem o que é a morte nem a temem. Caem na poeira da lide sem produzir um só grito. Silenciosos. Como bailarinos na batalha. E delicadamente a história acaba.
Um tema atual que salienta a desumanidade crescente dos nossos tempos, em que a vida humana perde o seu valor na balança dos populismos que agitam as bandeiras nacionais em nome do poder instalado...
ResponderEliminarJá li e gostei. Neste livro a escrita da Hélia Correia, sendo contida, densa, leva-nos ao âmago da procura incessante de uma terra prometida... tema intemporal, mas que tem hoje outra pertinência...
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