2 de setembro de 2019

Alan Hollinghurst, o livrinho de memórias e outras histórias do caso Sparsholt

“It is hard to do justice to old pleasures that cannot be revived - we seem half to disown our youthful selves, who loved and treasured them.” 
Alan Hollinghurst, The Sparsholt Affair (2017)
As antigas histórias de amor gregas que deram origem ao romance moderno relatavam os encontros-desencontros-reencontros dum jovem par de amantes, um herói e uma heroína obrigados a viver mil e uma aventuras peregrinas até alcançarem o final feliz canónico exigido pelo género. Depois o mundo latino introduziu o elemento homoerótico masculino, desfazendo de vez a ligação algo ambígua protagonizada por Aquiles e Pátroclo na Ilíada de Homero. No Satíricon de Petrónio, não há margem para dúvidas na relação de Encólpio e Ascilto, os anti-heróis centrais dessa sátira romana do tempo do imperador Nero. Este comportamento tido como desviante pela matriz judaico-cristã medieval será retomado nos séculos de ouro pelas novelas cortesãs barrocas, deslocando-se contudo para a esfera feminina. O desconforto sentido posteriormente pelas letras europeias de abordar a homossexualidade persiste ainda nos nossos dias das pós-modernidades, perfeitamente visível no modo pudico ou tabu de a encarar.

A temática gay entendida nas suas múltiplas facetas é tratada com mão de mestre por Alan Hollinghurst no meio milhar de páginas d'O caso Sparsholt (2017). O vencedor de alguns dos mais prestigiados prémios literários britânicos (Somerset Maugham Award, James Tait Black Memorial Prize e Man Booker Prize) reparte o romance por cinco blocos narrativos distintos, tantos quantos os momentos-chave escolhidos pelas várias instâncias enunciadoras, para relatar os factos vividos por três gerações de intervenientes na intriga, desde os primeiros tempos da Segunda Guerra Mundial até aos nossos dias. Tudo se inicia com um conjunto de episódios registados num livrinho de memórias centradas na Universidade de Oxford, numa altura em que o blitz e o blackout eram palavras de ordem nesse longínquo 1940. As histórias saltam para um ambiente mais tranquilo de férias na Cornualha, no verão de 1966. A ação muda-se para a Londres, durante a vigência da semana dos três dias de 1974, com uma visita breve de fim de semana ao País de Gales. Fixa-se na capital inglesa em 1995, num contexto artístico onde a pintura ocupa o primeiro plano. O descer do pano dá-se por volta de 2012, no mesmo palco citadino, onde as derradeiras cenas da peça se representaram.

Ao longo de quase três quartos de século, os ecos dum escândalo público de cariz sexual desviante dão corpo ao percurso existencial duma família, convertendo-a numa espécie de saga fragmentária produzida a várias vozes. O efeito de envelhecimento natural das personagens centrais/laterais é-nos transmitido através dos saltos estruturais que efetuam dumas décadas para as outras, deixando o preenchimento das lacunas intermédias ao cuidado dos leitores. Esforço constante de resolução facilitado pelo forte peso dialógico emprestado ao tecido discursivo. Os membros do Clube de Leitura, que frequentam o Clube Náutico e o Clube das Forças Armadas, aquele grupinho de habitués que dinamizam um Clube da Memória, para que a sua passagem pelo teatro secreto da vida deixe algumas marcas que mereçam ser lembradas. Mesmo aquelas que no seu tempo foram tidas como criminosas e que há muito deixaram de o ser. O reino da ambiguidade, das insinuações e das meias-palavras ou palavras inteiras, aparecem e desaparecem ao sabor do acaso exigido pelo momento, deixando atrás de si um rasto indelével de histórias improváveis vividas em épocas de apogeu/decadência no encalço determinado das seguintes.

Escrever um livro a partir dum caso de contornos eróticos singulares é um procedimento recorrente em ficção. O mais conhecido será, sem dúvida, Lazarilho de Tormes (1554), uma epístola breve dirigida a um destinatário desconhecido para justificar o processo de formação pícara do remetente. O romancista inglês vai mais além do que o no-velista castelhano. Esboça o perfil do herói/anti-herói que empresta o nome ao relato através de dois incidentes isolados de intimidades masculinas praticadas à margem da lei: um no recato estudantil dum campus universitário, outro nos bastidores da alta política nacional. O primeiro ficara restrito ao núcleo fechado dos amigos mais chegados, o segundo caíra nas garras da mediatização de efeitos imediatos e duradouros. O poder de atração exercido sobre todos e a capacidade de inspirar paixões em homens e mulheres, associado às suspeitas de corrupção e de comportamento indecoroso, convertem David Drummond Sparsholt no real «caso» de toda a saga. O glamour que o envolve vence o vazio cultural que o preenche. Virtualidade maior duma obra desenhada a partir dum leitmotiv comum a muitas outras, a demonstrar que no grande rio da literatura os afluentes são sempre bem-recebidos pelo grande curso de água que os leva até ao mar.

3 comentários:

  1. Feliz resenha, Prof ! Uma temática que se tornou recorrente nos nossos tempos, mas que ainda não é encarada com a naturalidade da época de Alexandre, o Magno, o grande guerreiro que se fez acompanhar nas suas conquistas pelo seu amante inseparável...

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  2. A antiga cultura grega ainda tem muito para nos ensinar, apesar de nos ter precedido quase três milénios...

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  3. Li e gostei e até fiz alusão ao livro numa crónica, até porque "encontrei" o jovem musculado, em tronco nu, a correr junto ao estádio de Coimbra. http://www.terraruiva.pt/2019/01/10/cidade/

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