26 de setembro de 2014

Pátio de Letras & Espaço de Memórias

Maria Helena Vieira da Silva
Bibliothèque en Feu (1974)
CAM - FCG - LISBOA

Siempre imaginé que el paraíso sería algún tipo de biblioteca.
Jorge Luís Borges

Uma cidade sem uma livraria não é uma cidade a sério. Uma cidade que é incapaz de manter as que tem não merece o direito de existir. No decorrer duma escassa geração, vi desaparecer uma dezena delas ao meu redor. Em seu lugar, vi surgir uma sapataria, uma farmácia, uma cervejaria, um salão de cabeleireiro, uma loja de peúgas, uma butique, uma garrafeira, uma bijutaria, um café. Podia ser pior. Ficarem os espaços ao abandono, encerrados e entaipados, como se vê tanto por aí. E lá vão desaparecendo também por contágio estações de caminho de ferro, escolas primárias, maternidades, cinemas, tribunais e o diabo a sete. Os exemplos são mais que muitos. Uma cidade que priva os seus moradores dos bens essenciais ou os expulsa para a periferia, uma cidade que cria o deserto no seu interior, essa cidade qualquer dia destes desaparece e ninguém dá por isso.

A mais recente livraria a fechar portas na cidade onde moro ainda não teve tempo de se transformar em coisa nenhuma. Vive a paredes meias com um bar, aquele a que esteve associada enquanto subsistiu e que lhe conseguiu sobreviver. In vinus veritas. Estarei certamente a exagerar um pouco. Os livros vendem-se agora nos supermercados. Nas pequenas e grandes superfícies. São transportados para casa no meio dos detergentes, mercearias e enlatados. Começam a ver-se cada vez mais nas estações de correios que ainda não fecharam definitivamente as portas aos utentes, também eles em via de extinção. Em vez de selos para as cartas que ninguém escreve adquire-se um bestseller de tiragem global, de preferência light, traduzido para português. É a chamada banalização da cultura ou apagamento dum país.

O Pátio de Letras durou seis anos. Entre 12 de julho de 2008 e 30 de agosto de 2014, ambicionou ser um espaço de memórias onde o espírito crítico se sentisse em casa; um espaço de encontro de pessoas e ideias, onde a cultura fluísse com a naturalidade com que se respira e conversa com os amigos. Estas palavras foram trazidas da nota de despedida composta pela autora do projeto na hora de fechar as portas e arrumar a casa. Fi-lo quase ipsis verbis e sem ter formulado um pedido formal de autorização. Fi-lo enquanto frequentador habitual desse espaço de reflexões pessoais e emo-ções partilhadas. Fi-lo porque me vi privado dum cantinho especial onde eu e os livros nos tratávamos por tu. As aspirações acalen-tadas pela criadora do conceito cumpriram-se na totalidade. O direito a ser diferente vingou enquanto pôde ser diferente. Depois acabou.

Durante cinco anos contribui com algumas palavras para o blogue da livraria. Entre 23 de setembro de 2009 e 31 de agosto de 2014, postei 55 textos compostos depois de lidos os livros no Leya no Pátio. Estão todos agrupados numa etiqueta pessoal que tomei de empréstimo. Continuam em liberdade no ciberespaço, confiantes que o universo virtual seja mais compreensivo com as palavras do que o real costuma ser e as deixe andar por aí à espera de navegantesComecei com o João Aguiar e terminei com o Gabriel García Márquez. O prazer da leitura associou-se ao prazer da escrita. Um dia destes porei o Arthur d’Algarbe a revisitar as histórias do Arthur Erre Guê e pô-las em linha mais uma vez. Quem sabe para que lado os fados nos levarão...

5 comentários:

  1. Assino ipsis verbis o protesto que deixas aqui registado, pois mais que o desgosto que o desaparecimento das livrarias nos causa, estas palavras salientam a banalização da cultura e do ensino, que sem livros não pode evoluir. Na capital alfacinha, além dos supermercados e estações dos correios, os livros vendem-se também em recantos do metropolitano e em feiras que se realizam regularmente em diversos locais. Tudo com o fito de se ganharem uns tostões, não porque os livros são parte essencial na difusão da cultura.
    Ainda bem que há outras formas de apoiar o ensino e a cultura literária, como é o caso das recensões que semeaste no Pátio de Letras, que continuarão a cumprir o seu papel pedagógico. Mesmo que as pessoas não deixem um comentário, há muitas que as lêem e delas apreendem lições importantes.
    Obrigada pela partilha da ligação aos teus textos no Pátio de Letras, esperando eu que o blogue não desapareça de todo no ciber-espaço, o que aconteceria apenas por vontade da promotora... Pensando nisso, acho interessante a ideia de os partilhares neste teu espaço, o que seria bem oportuna em termos de prevenir o seu desaparecimento...
    Para mim, esta ligação vai ser uma companhia especial nas horas de lazer, quando a tranquilidade nos deixa mais atentos ao que de essencial se deve assimilar.
    Obrigada, amigo Artur!

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  2. A razão da existência do blogue era dar visibilidade a todas as atividades culturais promovidas pelo Pátio de Letras. Fechadas as portas da livraria esvazio-se o sentido da sua manutenção. Os textos publicados no momento da leitura | escrita lá continuarão à espera de visitantes ocasionais. Agora, depois de lidos os livros, as histórias serão contadas pelo ilustre Artus d'Algarbe, enquanto as lides cavaleirescas do dia-a-dia o permitir...

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  3. Belas palavras, com a certeza de que a memória das mesmas não desaparecerá, enquanto houver quem as leia.

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  4. É triste ver estas portas a fechar... Uma livraria é a verdadeira casa dos livros, não um supermercado... Talvez para os jovens seja diferente mas eu não consigo, nem desejo, habituar-me!

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  5. Conheço bem estas histórias. Para mim já razoavelmente antigas. Fez este mês 20 anos que abri uma livraria em Caldas da Rainha. Em Dezembro próximo faz 11 anos que a encerrei. O que mais me deixa saudade era a chegada regular das novidades, todas as semanas, o convívio com os leitores e amigos com visitas mais regulares, algumas experiências editoriais e, claro, o activismo cultural. Foi bom enquanto durou. E uma perda pessoal difícil de superar.

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