11 de março de 2022

Umberto Eco e a poética do riso achada e perdida no nome da rosa

« Spesso i libri parlano di altri libri. Spesso un libro innocuo è come un seme che fiorirà in un libro pericoloso o, all’inverso, è il frutto dolce di una radice amara. [...Sino ad allora avevo pensato che ogni libro parlasse delle cose, umane o divine, che stanno fuori dai libri. Ora mi avvedo che non di rado i libri parlano di libri, ovvero è come si parlassero tra loro. [...Il bene di un libro sta nell'essere letto. Un libro è fatto di segni che parlano di altri segni, i quali a loro volta parlano delle cose. Senza un occhio che lo legga, un libro reca segni che non producono concetti, e quindi è muto. »
Ouvi falar pela primeira vez da obra que catapultaria Umberto Eco para o universo criativo da ficção nas antevésperas da publicação d'O nome da rosa (1980), pela Bompiani de Milão. Acedi também, nessa altura, a alguns trechos ainda inéditos do romance do então reputado filósofo, semiólogo, linguista e bibliófilo italiano, trazidos de Bolonha por uma discípula sua. Essa incursão fragmentária levou-me a efetuar uma leitura integral do livro em 1983, após a sua edição portuguesa. Assisti à exibição da versão filmada de Jean-Jacques Annaud numa sala Gaumont de Rennes, pouco depois da sua estreia francesa no final de 1986, nas férias de verão do ano seguinte. Algumas visitas lidas e visionadas passadas, a RTP1 estreou a minissérie realizada por Giacomo Battiato em 2018 e produzida pela Rai Fiction e Tele München. Momento ideal para recordar no modo escrito-visual a história contada por Adso de Melk e protagonizada por Guglielmo da Baskerville nessa semana de novembro de 1327.

Adiantei-me à difusão dos oito episódios ítalo-germânicos e cheguei ao fim da crónica impressa ainda o percurso folhetinesco ia a meio. Mesmo assim, deu para me aperceber que o fio condutor seguido pelos roteiristas mediáticos respeitam grosso modo a voz narradora do manuscrito trecentista encontrado na abadia beneditina de Melk, tornando dispensável um destaque particular a exigir uma análise comparativa exaustiva dos desvios pontuais cometidos. Afinal, quem conta um conto acrescenta um ponto, sobretudo quando se trata duma obra de ficção com um entorno histórico preciso, elaborado de acordo com o gosto espectável do público-alvo a que se destina. Todavia, por detrás das variantes detetadas, as histórias de livros que muitas vezes falam doutros livros sobrepõem-se sempre na intriga central registada por escrito pelo monge que o preservou em forma de diário ou de memória futura dos eventos por si vividos na longínqua e ingénua adolescência numa abadia perdida ao longo dos Apeninos, na Itália setentrional, entre o Piemonte, a Ligúria e a França. 

O testemunho do jovem noviço está repartido por sete dias, limitados por um prólogo justificativo e por um último fólio conclusivo. Recorre ainda à subdivisão de cada jornada da crónica autobiográfica pelo ritmo das horas litúrgicas medievais. O relato segue de muito perto a estrutura dos thrillers clássicos, desenhado ironicamente à maneira dum Sherlock Holmes e dum Dr. Watson de Conan Doyle. Chegado à abadia como escrivão e discípulo do mediador dum encontro de teólogos papais e imperiais, vê-se envolvido com o mestre e mentor numa série de sete mortes violentas ocorridas em série, cuja teia de mistérios e enigmas intricados acabam por desvendar. A breve trecho a questão sobre a pobreza evangélica de Cristo passa para segundo plano e entra-se no labirinto de segredos insondáveis guardados na biblioteca abacial, uma das mais ricas da cristandade. O segundo livro perdido da Poética de Aristóteles entra em cena e a Comédia achada na poeira das estantes interditas nos confins do finis Africæ, para logo se converter na chama infernal que alimenta a Tragédia da perda definitiva para a república das letras e da teoria da literatura.

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Assim começa o Evangelho segundo São João, assim começa o relato de Adso-Eco. À distância de dois milénios, a mensagem continua a mesma: a importância da linguagem divina feita humana desde o início dos tempos. Dois Prólogos a anunciarem o primado da palavra, de todas as palavras, as lícitas e as vedadas, sem distinção, as que fazem rir e as que fazem chorar, as que juntam o útil ao agradável, as que deleitam e as que ensinam, como os cadernos de anotações das aulas ministradas pelo fundador do Liceu ateniense. O maior paradoxo de todo o romance histórico-policial do semiólogo italiano passa a ser entendida como uma autêntica ironia trágica, quando, ao assistimos à destruição da obra muito perdida do filósofo grego, chegamos a levantar a hipótese de a poder salvar das chamas purificadoras. O horror ao vazio deixado pelo incêndio da Biblioteca de Alexandria invade-nos. De muitas grandes cidades antigas só restam os nomes. Assim com os livros também. A rosa antiga permanece no nome, nada resta para além dos nomes.* 

NOTA
* Cf. a última frase de Umberto Eco n'O nome da Rosa («... stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus.») com monge beneditino Bernardo Morliacence ou de Cluny: «Stat Roma pristina nomine, nomina nuda tenemus.» IN De Contemptu mundi (séc. xii): , I, 952).

L'ABBAZIA

4 comentários:

  1. Obrigada pela partilha deste belíssimo texto pedagógico, Prof! Este romance, que só li em 2011, depois de ler outros quatro de Umberto Eco e de ver o filme, continua a despertar-me vivo interesse, para já porque o autor tem o dom de captar a paixão dos leitores com a sua escrita lúcida e mágica. O tema do conhecimento contido nos livros avaramente proibidos e escondidos na biblioteca, sabiamente envolto no clima de idade média que se vive na abadia, prende-nos desde a primeira palavra. Em Alexandria, cidade que teve a sorte de manter o nome e a existência, senti que a nova biblioteca, por mais inovadora e dotada de doutos livros, não conseguiu mitigar a sensação de perda irremediável que nos assalta quando aprendemos sobre o histórico incêndio da lendária Biblioteca antiga. Vou sublimando por ora esse sentimento vendo os restantes episódios da série televisiva...

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    1. Nenhuma biblioteca recente substitui uma biblioteca perdida. Nem sequer a nova de Alexandria consegue substituir a antiga. Continuo a seguir os episódios da série ainda no ar. Segundo as minhas contas só falta transmitir o último, aquele que será para mim o mais doloroso, porque corresponderá à destruição pelo fogo da biblioteca da abadia beneditina imaginada por Umberto Eco e, com ela, a ilusão de poder salvar a segunda parte perdida da «Poética» de Aristóteles. E o desaparecimento fictício dos apontamentos sobre a Comédia da companhia da Epopeia e da Tragédia, tratadas no primeiro livro sobrevivente, voltará a ser equacionada mais uma vez como se fosse de facto real...

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  2. Apreciei muito o texto.
    Vi o filme primeiro, li o romance histórico depois.
    Foi um livro emprestado, não cheguei a adquiri-lo, ainda.
    Se o filme foi inesquecível, a leitura memorável. Desconhecia que tinham produzido uma série para a televisão. Curioso.

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  3. Uma brilhante análise, que muito valoriza o trabalho em causa e desperta a atenção do leitor.

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