9 de agosto de 2023

Ray Bradbury, Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel do livro se incendeia e arde...

"It was a pleasure to burn. It was a special pleasure to see things eaten, to see things blackened and changed. With the brass nozzle in his fists, with this great python spitting its venomous kerosene upon the world, the blood pounded in his head, and his hands were the hands of some amazing conductor playing all the symphonies of blazing and burning to bring down the tatters and charcoal ruins of history. With his symbolic helmet numbered 451 on his stolid head, and his eyes all orange flame with the thought of what came next, he flicked the igniter and the house jumped up in a gorging fire that burned the evening sky red and yellow and black. He strode in a swarm of fireflies. He wanted above all, like the old joke, to shove a marshmallow on a stick in the furnace, while the flapping pigeon-winged books died on the porch and lawn of the house. While the books went up in sparkling whirls and blew away on a wind turned dark with burning."

Num destes dias agitados da invasão dum país soberano disfarçada de intervenção militar especial, um iraniano tresloucado queimou um exemplar do Alcorão perto duma mesquita em Estocolmo. Este ato islamofóbico foi aproveitado pela Turquia para vetar durante algum tempo a entrada da Suécia na Nato. A notícia deste ato ritual de contestação duma ideologia tida como totalitária, cometida por uma outra de sinal identicamente extremista, apanhou-me a caminho das férias de verão longe dos holofotes televisivos. Aproveitei este fait divers da aldeia global atual para encetar uma releitura do mais lido relato de Ray Bradbury, o Faherenheit 451 (1953), uma distopia atemporal, cujo título nos remete para a temperatura a que o papel dum livro se incendeia e arde, i.e., 232,8ºC, pouco mais ou menos.

Tudo se passa num espaço e num tempo antecipados pouco precisos, a configurar as habituais metatopias-metacronias exigidas por este tipo especial de ficção científica. Se as referências singulares a Los Angeles, St. Louis e Chicago nos remetem para a Califórnia, Missouri e Illinois, nada nos garante que estejamos ainda numa entidade política soberana atualmente conhecida por EUA. Os eventos relatados projetam-nos para uma realidade vivencial ainda distante da nossa, mas pontualmente concretizada em momentos menos felizes da história. O visionamento há cinquenta anos de filmes do foguetão V-2 (1942) e a alusão à vigência do padrão intelectual seguido nos últimos cinco séculos ou mais do Hamlet (1599-1601), de Shakespeare, remetem-nos para localizar a ação entre finais do Séc. XX e inícios do XXI, para todos os efeitos após 1990, ano/década em que a sociedade retratada no romance terá vencido duas guerras atómicas e reformulado toda a sua forma de agir.

Os bombeiros daquele país sem nome conhecido e sem data precisa de nascimento têm por missão vital a queima sistemática de livros e das casas que os abrigassem. Absurdo ilusório, imediatamente desfeito, se nos lembrarmos da alegada purificação pelo fogo de todos os textos contrários às ideologias religiosas e políticas então dominantes. A Inquisição e o Nazismo são exemplos perfeitamente ilustrativos em termos históricos a par da eliminação das bibliotecas do Don Quixote ou do mosteiro d'O nome da rosa, imaginados por Cervantes e Umberto Eco na esfera literária. O autor aponta a intolerância racial como causa inicial da censura às obras impressas, a que depois se acrescentaram outras num crescendo infindável. Se não se gosta queima-se e resolve-se o problema. A partir de dado momento já restava muito pouco a preservar e não se perdia grande coisa. Afinal os livros não diziam nada e ninguém passou a sentir a sua falta. E, depois, havia sempre a possibilidade de substituir as humanidades pelo desporto.

uma larga mão-cheia bem contada de anos, ouvi num congresso internacional de países lusófonos uma comunicação que mudou radicalmente a minha forma de encarar a transmissão verbal de tradição oral. Soube então que os arquivos ancestrais destruídos durante a guerra civil moçambicana haviam sido reconstruídos através da memória atenta dos anciãos sobreviventes ao conflito. Espantoso. Nesse momento compreendi melhor o processo de preservação das palavras emprestadas por Homero à Ilíada e à Odisseia, por volta de 800AEC, as tais que andaram de boca em boca até serem compiladas por Pisístrato, entre 545-527AEC. Um exercício coletivo multigeracional que os resistentes do mundo alienado plasmado nas páginas duma epopeia em prosa moderna tomam como modelo e replicam. Na tentativa de ultrapassar a Idade das Trevas então vigente e de derrotar os cães-mecânicos programados para perseguir e eliminar os amantes da leitura, de banir de vez as salamandras, fénix e demais símbolos da barbárie instituída, cada um dos resistentes clandestinos transforma-se num homem-livro. Adota-o, memoriza-o, eterniza-o. Oferece-o às novas gerações, para assim fazerem ressurgir das cinzas a humanidade que lhes havia sido sonegada em nome de coisa nenhuma.

2 comentários:

  1. A convicção com que alguém cumpre uma tarefa, sem raciocinar por si mesmo e ser capaz de questionar ordens recebidas, é assustador. Tanto mais porque há muitos por aí, assim como sempre houve... Restam-nos as utopias que nos incentivam a acreditar que há uma forma de ultrapassarmos a questão e de (re)inventarmos soluções. Acreditemos, pois, que somos capazes de nos transformar em membros essenciais de tradição oral e preservar para o futuro a nossa humanidade...

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    1. A cegueira e o fanatismo de mãos dadas tem sido em muitos momentos da história humana um facto de facto assustador. As utopias aparentemente purificadoras são mesmo possíveis, até se transformarem nas mais desesperantes distopias. Mas, nessa altura, é quase sempre tarde demais...

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