«– Foste tu que fizeste o Milagre… Os pastorinhos viram em ti a Virgem mãe de Deus, a encarnação da pureza, da virtude e do amor, e adoraram-te. Viram-te como eras – e és – através do luxo de Zambujeira e de tanta miséria: boa, virgem, maternal! (A esta palavra Salomé ergueu a cabeça, surpreendida.) Tu és o autêntico único e o único milagre. Deste-lhe realidade física –e não “metafísica”, como queria o filósofo-deputado! Enquanto os outros tiraram dele a riqueza e o poder, tu colheste nele a redenção pelo amor… o nosso amor! Haverá maior milagre?»José Rodrigues Miguéis, O milagre segundo Salomé (1975)
O trinómio mistério-mito-religião costuma ser usado para pontuar as etapas que nos conduzem, passo a passo, ao conhecimento metafísico, aquele que está para além da física ou natura e se especializou em resolver as questões que a ciência ainda não tratou dum modo cabal e decisivo. A literatura tem-se servido deste universo triangular do desconhecido-explicado-sistematizado, que tem balizado o devir multissecular dos povos, para construir as suas próprias interpretações dos factos, traduzidas em contos-novelas-romances do natural/sobrenatural. José Rodrigues Miguéis inspirou-se no fenómeno místico das aparições-visões que tinha invadido o país no início do século passado e converteu essa efeméride da vida real num relato da vida virtual, que compilou em livro com o título de O milagre segundo Salomé (1975). Tarefa particularmente penosa, dada a essência sensível das temáticas tratadas, sujeitas tanto à proibição da Igreja como à censura do Estado, então vigentes e impostas ao país com mãos de ferro. Depois de a trama ter sido imaginada nos anos 32-33, redigida nos seguintes até aos de 50 e recopiada com caráter definitivo em 66-67, só seria tirada da gaveta e tornada pública após a queda da ditadura e a restauração da democracia em 74. O resultado foi uma gestação dolorosa, uma fabulação engenhosa, uma divulgação retardada, que já nasceu um pouco desfasada no tempo e se faz sentir com mais acuidade ainda hoje em dia.
Fiz a minha primeira incursão ao texto na passagem da década de 80 para a de 90. Trabalhei-o num período relativamente curto, tendo de seguida virado a minha atenção noutras direções mais apetecíveis. Esqueci-me da sua existência até há meia dúzia de meses. O centenário da mediática epifania da Virgem em terras de Santa Maria, celebrado com mais uma visita papal ao designado Altar do Mundo, bem como os rumores da canonização dos dois videntes mais jovens, trouxeram-me à memória leituras antigas. Retirei da estante os dois volumes da obra, dei-lhes uma vista de olhos rápida e resolvi encetar uma nova viagem de exploração pelo seu interior. Achei esta segunda peregrinação bem mais fastidiosa do que me tinha parecido a inaugural. À medida que as jornadas da caminhada se iam sucedendo umas às outras, a reconstituição da história foi-se fazendo paulatinamente, sem surpresas de percurso ou ensinamentos acrescidos. A novidade tinha-se esgotado e transformado num déjà vu inevitável. Os ecos do passado ganharam consistência e devolveram às palavras sonoridades e sentidos já conhecidos. Valiosos e a exigirem, por isso mesmo, o merecido reconhecimento.
A tessitura narrativa desenhada encontra-se repartida por dois eixos discursivos paralelos e complementares. Aqueles que seguem os registos biográficos de Severino Zambujeira e Dores dos Santos, os dois provincianos que se cruzam em Lisboa e assumem o papel de protagonistas de todos os milagres, prodígios e mistérios chamados à colação. O zé-ninguém dá lugar ao nouveau riche, alcunhado depreciativamente de conde de Alfarrobo, e a sopeira enganada converte-se em prostituta encartada, rebatizada com o nome postiço de Salomé. A trama romanesca une-os como amantes e promotores involuntários da manifestação súbita da Senhora das Dores de Meca, na beirã Lapa d'Ursos, a três pastorinhos analfabetos: Manel, Maria e Jaquina. Há ainda a presença dum Gabriel Arcanjo, feito de carne e osso como todos os comuns mortais, cujo papel no desenlace da intriga me poupo de especificar. No remate dessa crónica de enredos ficcionados, a desmontagem plena de todos os equívocos provocados pelo acaso e alimentados pela ilusão concretiza-se, não criando no leitor qualquer margem de dúvidas a esse propósito: nada de sobrenatural se produziu, porque os acontecimentos que originaram o insólito tiveram lugar mas se deixaram explicar verosimilmente, sem infringir as leis estritas do natural.
Em declarações finais registadas numa nota de autor, esclarece-se que a obra oferecida ao leitor escapa à órbita do romance histórico, demarcando-se tanto das panaceias do regionalismo como dos ditames do vanguardismo. Mais do que um panfleto erigido a favor ou contra qualquer coisa, deverá ser entendida como uma mera figuração simbólica duma época, para retratar de forma convencional o ambiente e o estado de espírito coletivo que conduziriam ao pronunciamento militar de cariz nacionalista de 26 e à subsequente instauração dum regime antiparlamentar, autoritário e repressivo. Aviso importante vindo de quem vem, mas pouco seguro de ser seguido por aqueles a quem é endereçado. É que no universo das letras predomina a liberdade de interpretação das mensagens transmitidas. Só assim a arte poética de imitar as aventuras/desventuras definidoras da condição humana por meios e modos diversos se concretiza. Por isso nos cativa, nos fascina, nos deslumbra. Por isso amamos os livros. Por isso os lemos e relemos. Por isso lhes abrimos as portas e deixamos a magia das palavras acontecer.
Fiz a minha primeira incursão ao texto na passagem da década de 80 para a de 90. Trabalhei-o num período relativamente curto, tendo de seguida virado a minha atenção noutras direções mais apetecíveis. Esqueci-me da sua existência até há meia dúzia de meses. O centenário da mediática epifania da Virgem em terras de Santa Maria, celebrado com mais uma visita papal ao designado Altar do Mundo, bem como os rumores da canonização dos dois videntes mais jovens, trouxeram-me à memória leituras antigas. Retirei da estante os dois volumes da obra, dei-lhes uma vista de olhos rápida e resolvi encetar uma nova viagem de exploração pelo seu interior. Achei esta segunda peregrinação bem mais fastidiosa do que me tinha parecido a inaugural. À medida que as jornadas da caminhada se iam sucedendo umas às outras, a reconstituição da história foi-se fazendo paulatinamente, sem surpresas de percurso ou ensinamentos acrescidos. A novidade tinha-se esgotado e transformado num déjà vu inevitável. Os ecos do passado ganharam consistência e devolveram às palavras sonoridades e sentidos já conhecidos. Valiosos e a exigirem, por isso mesmo, o merecido reconhecimento.
A tessitura narrativa desenhada encontra-se repartida por dois eixos discursivos paralelos e complementares. Aqueles que seguem os registos biográficos de Severino Zambujeira e Dores dos Santos, os dois provincianos que se cruzam em Lisboa e assumem o papel de protagonistas de todos os milagres, prodígios e mistérios chamados à colação. O zé-ninguém dá lugar ao nouveau riche, alcunhado depreciativamente de conde de Alfarrobo, e a sopeira enganada converte-se em prostituta encartada, rebatizada com o nome postiço de Salomé. A trama romanesca une-os como amantes e promotores involuntários da manifestação súbita da Senhora das Dores de Meca, na beirã Lapa d'Ursos, a três pastorinhos analfabetos: Manel, Maria e Jaquina. Há ainda a presença dum Gabriel Arcanjo, feito de carne e osso como todos os comuns mortais, cujo papel no desenlace da intriga me poupo de especificar. No remate dessa crónica de enredos ficcionados, a desmontagem plena de todos os equívocos provocados pelo acaso e alimentados pela ilusão concretiza-se, não criando no leitor qualquer margem de dúvidas a esse propósito: nada de sobrenatural se produziu, porque os acontecimentos que originaram o insólito tiveram lugar mas se deixaram explicar verosimilmente, sem infringir as leis estritas do natural.
Em declarações finais registadas numa nota de autor, esclarece-se que a obra oferecida ao leitor escapa à órbita do romance histórico, demarcando-se tanto das panaceias do regionalismo como dos ditames do vanguardismo. Mais do que um panfleto erigido a favor ou contra qualquer coisa, deverá ser entendida como uma mera figuração simbólica duma época, para retratar de forma convencional o ambiente e o estado de espírito coletivo que conduziriam ao pronunciamento militar de cariz nacionalista de 26 e à subsequente instauração dum regime antiparlamentar, autoritário e repressivo. Aviso importante vindo de quem vem, mas pouco seguro de ser seguido por aqueles a quem é endereçado. É que no universo das letras predomina a liberdade de interpretação das mensagens transmitidas. Só assim a arte poética de imitar as aventuras/desventuras definidoras da condição humana por meios e modos diversos se concretiza. Por isso nos cativa, nos fascina, nos deslumbra. Por isso amamos os livros. Por isso os lemos e relemos. Por isso lhes abrimos as portas e deixamos a magia das palavras acontecer.
Bom dia, Artur.
ResponderEliminarEis um autor que ainda não li. Obrigada, pela lembrança. Muito bom texto.
Belo texto sobre um tema sempre atual em Portugal, revisitado especialmente no mês de maio mas sempre presente na realidade do povo católico... Li vários livros do autor com prazer, pela abordagem psicológica da condição humana, mas terei de revisitar este, cujo trama já se me esqueceu...
ResponderEliminarRegresso sempre com prazer a J R Miguéis . A Escola do Paraíso é um dos "livros da minha vida".
ResponderEliminarAdorei! Gosto muito da obra de José Rodrigues Miguéis. Também li "Arroz do Céu" e "Léah".
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