«O seu corpo queria viver, e essa vontade era tão frenética e intensa que o medo da morte enquanto saudade da vida não chegou a aflorar-lhe o espírito.»Paulo Varela Gomes, O verão de 2012 (2013)
Recebi este aniversário como prenda natalícia o livro dum autor desconhecido. Na melhor das hipóteses, tê-lo-ia deixado sossegado nos escaparates das livrarias, por onde os meus passos me vão levando com a frequência ditada pelo hábito e os afazeres do quotidiano me permitem. Paulo Varela Gomes estreia-se no mundo da ficção com O verão de 2012 (2013), centrado no ano em que se reformou e em que as interpretações exotéricas dos calendários maias apontavam como palco duma transformação cósmica ou do próprio fim do mundo. Os prognósticos ou profecias diziam que ocorreria no dia 21 de dezembro. Falharam redondamente e o romance, novela ou mero conto alargado, foi dado à estampa. As laudes de papel encheram-se de carateres impressos com tinta fresca e os diálogos travados pelo psiquiatra-narrador e paciente-protagonista, em forma de notas dispersas e textos fragmentários, foram confiados ao convívio de todos nós.
Tudo começa com o anúncio duma obscura tragédia ocorrida no largo do Rato, verdadeiro leitmotiv literário, cujos contornos precisos só serão revelados nos derradeiros momentos da obra. O alfa e o ómega dum drama acontecido e inspirador dum relatório clínico-criminal circunstanciado. O diagnóstico dum cancro incurável e os efeitos duma grave depressão terão levado o sujeito central da efabulação a esquecer-se do medo da morte ou saudade de vida e a cometer um ato temerário, que o colocaria nas páginas dos mass media planetários. A presença da Troika por essas datas em Lisboa foi determinante para desencadear o conflito e provocar a catástrofe. Os pormenores do insólito são-nos revelados por uma notícia de jornal, transcrita na final secção forjada na tessitura narrativa. Omiti-los-ei. O fascínio dum original é sempre preferível à facilidade dum resumo. Ficamos todos a ganhar.
O dossiê médico organizado pelo arquiteto interno da enunciação pode ainda ser visto como um caleidoscópio de testemunhos diversificados, habilmente urdidos para dar sentidos complementares à trama. Coincidências marcadas por datas e eventos documentados no diário de William Beckford e nos textos do enfermo. Frances Brooke entra em cena e a história epistolar de Lady Julia Mandevile toma conta da intriga. O ato criativo traçado em primeira mão recua e a crítica literária entrelaçada a várias vozes avança. Os juízos políticos de Cúrzio Malaparte sobre as técnicas do golpe de estado são sintetizados e trazem à boleia referências a figuras fundadoras de sistemas ideológicos alternativos de obter a liberdade do homem. Comunistas, anarquistas, capitalistas, fascistas. Palimpsesto sui generis de testemunhos cruzados sobre o theatrum mortis dos nossos tempos conturbados, somatório de episódios quotidianos de revolta e soluções armadas com final feliz.
O devir histórico europeu é equacionado e o percurso lusitano questionado. Os relatos de viajantes estrangeiros a Portugal são utilizados para traçar o retrato cultural do país. Depreciativos das gentes e costumes que o habitam, eivados de lugares comuns próprios de quem só vê o que quer ver, inquinados até à medula por um conjunto de preconceitos ancestrais que teimam em manter-se de pedra e cal. As vertigens maníaco-depressivas do herói trágico da crónica levam-no a insurgir-se com esse paradigma de menoridade assumida, apontando a sua indignação sobretudo contra os ensaístas nacionais que mal acabam de atravessar a fronteira se põem logo a enaltecer a terra alheia em detrimento da sua. Pinheiro Tomé da Veiga é destacado mas outros mais são referidos. A ideia de revolta surge no horizonte e o plano de ação é delineado. A retórica neobarroca das virtudes da aldeia esgota-se e a oratória pós-moderna do menosprezo da corte anima-se. A erudição académica abunda em ambos os casos. Pedagógica e enfandonha.
As prendas de anos são por vezes surpreendentes. Esta foi-o com certeza. O livro negativo sobre um país moribundo converteu-se num panfleto de resistência às agressões europeias do norte sobre as periferias do sul. Os três Pequenos Contos da Revolução, idealizados pelo paciente e transcritos pelo psiquiatra, apontam-nos os caminhos eficientes de alterar as coordenadas do fatalismo nacional. Drásticas, eficientes, definitivas. A figura onírica da morte surge na ribalta, o coro trágico entoa o último canto do êxodo e o pano de cena cai abruptamente no tablado da vida. A catarse consumara-se…
NOTA
O aniversário referido no texto já tem três anos, altura em que o li e publiquei as minhas notas de leitura no Pátio de Letras. Faço-o agora, no momento em que os anúncios de morte aludidos na ficção se concretizaram no mundo real e levaram o autor a atravessar a fronteira que leva para o outro lado da vida. E assim a condição humana se vai cumprindo...