«Quando dedilha a máquina de escrever, Wakaso está consciente de que deve evitar África. Se por acidente, coincidência ou acaso vier a ser realmente capaz de escrever, não é aceitável que produza alguma coisa que se assemelhe ao trabalho de um infinito macaco africano refletindo sobre a sua condição simiesca e infra-humana.»
Manuel Jorge Marmelo, Macaco infinito (2016)
Uma velha dicotomia convertida em lugar-comum inegável afirma que as ciências se repartiriam por duas áreas distintas: as humanas e as exatas. A dar crédito cego a esta linha estreita de pensamento, estaríamos aptos a inferir que as primeiras seriam forçosamente inexatas e as segundas fatalmente desumanas. Dedução absurda duma oposição inexistente entre saberes fundados ao longo dos milénios pelo homo sapiens sapiens para, desse modo, demarcar o seu território enquanto ser vivo diferenciado. É ao conjunto das vias contidas no trivium e no quadrivium que as sete artes liberais definidas por Afonso X, o Sábio, foram crescendo em torno das qualidades e quantidades de explicar o mundo em que vivemos. A interligação entre umas e outras é insubstituível. A própria matemática, tida como a mais precisa das linguagens criadas pelos primatas racionais, necessita como pão para a boca das letras para dar sentido à álgebra das contas-correntes quotidianas que a envolvem. Aquelas onde cabem os prodígios decifradores dos números imaginários, i.e., a pedra-de-toque da resolução imediata e infalível da raiz quadrada da unidade negativa, traçada na fórmula √-1 = i.
A ânsia desmedida e nunca saciada de rivalizar com a transcen-dência divina levou os descendentes remotos dos australopitecos a cogitar uma série de paradoxos labirínticos, baseados na habilidade de tornar possível o impossível, como será o caso, v.gr., do Teorema do Macaco Infinito. Afirmar categoricamente que se pusermos por um tempo ilimitado uma máquina de escrever à disposição dum símio, este acabará por reescrever, mais tarde ou mais cedo, uma obra-prima da literatura universal à altura dum Shakespeare ou dum Cervantes. Os peritos das probabilidades estatísticas pegaram nesta metáfora evolucionista atribuída a Darwin e provaram por A+B a verdade absoluta que conteria, através duma simples equação explicativa das incógnitas em presença. Os arquitetos de relatos inverosímeis ou pouco credíveis deixaram-se cativar pelo desafio e desenvolveram-no como só a ficção o sabe fazer. Mário de Carvalho consubstanciou-o em «O nó estatístico», um dos contos mais hilariantes do estranho-fantástico-maravilhoso gizados por Todorov, reunidos n’A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho (1983). Pôs o chimpanzé criança chamado Golo a transcrever a versão integral da Menina e moça (1554) de Bernardim Ribeiro, para espanto dos donos e sorriso dos leitores. Manuel Jorge Marmelo segue-lhe a peugada e compõe um insólito Macaco infinito (2016) em forma de prosa poética ou de poesia integral por versificar, cujos meandros discursivos convém sumariar nas suas coordenadas gerais.
A intriga é escassa e pode incluir-se nas três unidades de espaço-tempo-ação arroladas por Aristóteles na Poética para definir a tragédia ática. Tudo se passa no Bar Mitzvá, uma casa de alterna ou de prostituição clandestina, nas proximidades dum aeroporto. No espaço destinado ao público impera uma reprodução da tela de Picasso Les demoiselles d’Avignon e no privado uma outra do tríptico de Bosch O Jardim das delícias terrenas. Os dias são todos iguais entre si, como se tratasse dum único nascer e pôr de sol com as noites sem conta de permeio a darem continuidade ao imutável. A história que lhe dá corpo reduz-se a um conjunto de episódios e estásimos que se sucedem ao longo de quarenta fragmentos situados entre o párodo inicial e êxodo final, depois de executada a catarse exigida pelo cânone. As falas proferidas em registo direto ou relatado pertencem quase todas ao proprietário branco do prostíbulo e ao criado negro convertido em macaco infinito. As máscaras escolhidas para os dois antagonistas em cena e promotores da ironia trágica final. O coro formado pelas prostitutas residentes e clientes habituais preenchem a orquestra dramática regida pelo narrador no seu papel de corifeu. Um acidente ocorrido nos bastidores da guerra colonial reduzira o protagonista europeu a uma cadeira de rodas e à dependência total do coprotagonista africano. Incumbiu-o de concretizar o teorema de registar numa máquina de escrever um romance essencial e ilustrativo dos piores e mais autênticos impulsos da espécie humana. Arrogância intolerável para as divindades imortais que regem a mortalidade dos homens. O castigo surgirá no momento exato do clímax apaziguador de todas as discórdias.
Ao longo das duas centenas de páginas do relato, senti uma curiosidade insaciável por saber qual teria sido a obra que o acaso ditara a este macaco infinito feito de encomenda para datilografar na Corona 3 posta à sua disposição. O resultado é dececionante. As poucas frases reveladas andam muito longe de constituir uma peça-mestra da literatura universal. Se foram compostas por alguma celebridade digna desse nome disfarçam muito bem. Informa-nos a entidade promotora da fábula que o Million Monkey Project, concebido em 2011 por Jesse Anderson, terá reproduzido em mês e meio as obras completas do poeta e dramaturgo inglês. O processo é descrito com algum pormenor a que falta, todavia, elucidar se o software inventado pelo informático respeitou a sequência das palavras registadas nos textos ou se se limitou a transcrever palavras soltas que poderiam caber em qualquer obra conhecida ou desconhecida. Questão a todos os títulos indiferente já que como se afirma no parágrafo terminal, Abdul Majeed Wakaso, o sobrevivente do ágon central do conflito, é apenas e somente um homem entre muitos outros, o mais infinito dos macacos.