Notícia de Fiadores (1175) [IAN/TT, Mosteiro de São Cristóvão de Rio Tinto, maço 2, doc. 10; 120×327mm] |
Dizem os arautos dos aniversários nacionais que a língua portuguesa escrita cumpriu no passado 27 de junho oito séculos de vida. Basearam-se na redação do Testamento de D. Afonso II (1214), depositado na Torre do Tombo. Ignoro os verdadeiros critérios seguidos para selecionar este documento régio em detrimento doutros menos palacianos, mas com mais pátina nos pergaminhos. A própria Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas admite a existência da Notícia de Fiadores (1175), documento notarial lavrado 39 anos antes, onde o desconhecido Pelágio Romeu arrola os nomes dos seus fiadores para uma memória pessoal futura. O peso duma testa coroada terá sido decisiva no momento de resolver as hesitações institucionais da escolha. Mais a mais quando se tratava da figura dum Borgonha que ficou registado na história com o cognome d' O Gordo.
Ditaram os fados que regem as coincidências que se celebre também agora os quatro séculos da publicação da Peregrinação (1614) de Fernão Mendes Pinto, uma das obras maiores das letras portuguesas, a tal que quase toda a gente conhece de nome e que quase ninguém leu ou pense fazê-lo. Menos sorte teve O desenganado (1614) de Francisco Rodrigues Lobo, o último retábulo dum tríptico pastoral desconhecido de todos, até dos fazedores encartados de cânones. Celebram-no nos círculos fechados dos iniciados e dispensam-se de lhes dar uma visibilidade adequada aos dias que passam. Dois testemunhos com registos diferentes e tratamento diversificado. Aqui, a língua vernácula dos andarilhos anónimos que fizeram a epopeia em prosa do Oriente a vencerem a língua artificial dos livros de pastores das arcádias idílicas gizadas pelas estéticas cortesãs da época.
As efemérides valem o que valem. Até admitimos que se possa fixar o dia exato do nascimento da língua. Saber quando se passou do latim para o vernáculo. Omitimos que o relato do aventureiro e explorador quinhentista fora composta quatro décadas antes de ter saído dos prelos de Pedro Craesbeeck. Passamos por alto ter então António Álvares terminado a impressão da primeira pastoral novelada no nosso idioma. Escolhe-se uma data, marcam-se os festejos, organizam-se as homenagens, atiram-se os foguetes e apanham-se as canas. Depois preparamos outras honrarias semelhantes. Nos próximos anos haverá de certeza muitas mais. Assim a Corte na aldeia (1619) de Francisco Rodrigues Lobo seja lembrado e se releia com olhos de ver o elogio à língua portuguesa, tão mal tratada nestes nossos dias de submissão forçada a outros falares tidos como mais dignos da aldeia global.
PARABÉNS
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