Vincent van Gogh „Afdeling in het ziekenhuis in Arles” (1989) |
Lembrando cenas de enfermaria de há um mês...
As unhas do Zé Coxo
Durante a minha última passagem pelo CHUA fui vizinho contíguo de enfermaria do Zé Coxo, antigo pescador da Fuzeta com um palmarés impressionante por outros mares atlânticos da costa de Marrocos e Mauritânia. O apodo deve-se ao facto dum problema de diabetes o ter privado duma perna. Desta feita, a maleita obrigara-o à amputação dos dedos do pé restante. Com um sorriso nos lábios e indiferente às dores que sentia, o espírito otimista que o caraterizava levou-o a comentar: «Agora, pelo menos, já não tenho de cortar as unhas dos pés».
O Filho do Desenfiado
Mesmo em frente do Zé Coxo, ficava a cama dum outro pescador mais jovem a que chamei Desenfiado, por passar o dia em lugar incerto e só regressar para dormir. Gabava-se de não ter estudado nem precisar de o fazer. O filho mais velho ganhava 7000€ por mês num clube da 2.ª divisão sem precisar de ir à escola. Na véspera de ser operado a um braço que tinha superenfeixado, desapareceu sem dizer água-vai. Preferiu brindar-nos com aquelas palavras futeboleiras registadas com as peculiares metáforas visuais das histórias aos quadradinhos: «👾❓➕❗💀🔱⭐👿».
A Princesa das Astúrias
No meu mais recente internamento hospitalar, voltei a encontrar-me com figuras conhecidas há cerca dum ano. Médicos e enfermeiros à parte, refiro aqui a mais alegre das auxiliares de serviço. Trata todos por Príncipes e guardou para si mesma o título de Princesa das Astúrias. Numa das suas conversas habituais, confidenciou-me o seu desgosto profundo por não ter podido seguir a carreira militar. Um cancro na tiroide impedira-a de concretizar o seu sonho. Sente-se todavia realizada: «Assim, substituí a guerra que visa a morte pela guerra que visa a vida».
A Mulher Barbeira
Na segunda quinzena de abril fui de novo visitado por uma das barbeiras do hospital. Reconheceu-me de imediato, decerto por ser dos poucos a aceitarem os seus serviços de rapadoura oficial dos pelos da cara. Repetiu um par de vezes a arte de me arrancar a barba como se estivesse a cortar relva com uma sachola. Aguentei estoicamente como se nada fosse, porque no final da faina fiquei sempre com uma sensação plena de leveza. É que depois da tempestade vem a bonança. Despedi-me até nunca mais. Limitou-se a responder: «Assim espero!».
Cenas de vida que registam as idiossincrasias humanas... Os meus votos para que não precises de tropeçar mais em personagens caricatas...
ResponderEliminarA vida é assim mesmo feita destas pessoas que por vezes nos tornam as penas um pouco mais leves. Haja sempre alguém que nos faça sorrir mesmo nas horas difíceis. Digo, sorrir muitas vezes para dentro.
ResponderEliminarAs enfermarias dos hospitais públicos, são um repositório de vidas tais que não julgávamos existir. Integram um mundo aparentemente longínquo do nosso. Apreciei muito a sua leitura da realidade que pode testemunhar.
ResponderEliminarUm condensado da vida, com tanta diversidade. Assim tenhamos olhos e atenção para ver e apreciar - tu tens.
ResponderEliminarLembranças dum tempo, que felizmente já passou!
ResponderEliminarAgora, muita força amigo e sempre a melhorar, cada vez mais, até à completa recuperação, estamos aguardando a sua volta, para podermos cantar todos juntos.
A doença transforma-nos. O sofrimento toca as fímbrias da alma e por vezes sai uma canção.
ResponderEliminarDescrição pelo lado positivo da tua “estadia”.
ResponderEliminarNa tristeza e na dor também aprendemos, se estivermos abertos à vida e aos outros!
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