Florence Nightingale (1820-1910) H. Lenthal, c. 1850 |
Quero rua
Quando a Ministra da Saúde suspendeu as visitas aos doentes internados, encontrava-me nos cuidados intensivos do Hospital de Faro. No lado oposto da enfermaria, um politraumatizado repetia cadenciadamente: quero rua, quero rua, quero rua. O insucesso do pedido levou-o a mudar de ladainha: dor, dor, dor. Há certas ocasiões em que a realidade toma conta da consciência e faz dela gato-sapato.
As mulheres barbeiras
Um hospital é um universo em ponto pequeno. A par dos serviços tradicionais, aparecem outros que não deixam de nos surpreender. Fico-me com as mulheres barbeiras. Uma mais efusiva e brincalhona. Outra mais eficiente e discreta. Habituei-me ao tratamento de polé com material de segunda. Depois resolvi fornecer-lhes o meu mais adequado para a função e tudo mudou radicalmente de figura.
Galinha de campo
Um fisioterapeuta do CHUA perguntou-me certo altura se era da cidade ou do campo, se já tinha visto no verão alguma galinha na natureza. Apeteceu-me dizer que só nalguma gravura ou faiança do Bordalo. Contive-me. Afinal tudo estava centrado nas asas abertas da ave. Fiquei a saber que o fazem para facilitar a respiração. Aprendi e agora tento andar sempre com os braços bem afastados a ver o que dá.
Bailarinas flutuantes
Há umas bailarinas russas de Berezka que flutuam pelo palco como se não tivessem peso. Encontrei algo de similar por aqui. Enfermeiras que circulam pelos quartos como borboletas esvoaçantes dispensadas de tocar o chão que pisam. Ponho-me a imaginar a Florence Nightingale doutros tempos trajada à moda dos nossos e o efeito é surpreendente: touca branca na cabeça e socas superleves nos pés.
Em dias de confinamento, bato palmas à tua capacidade de abrir as asas e fazer o que te dá prazer. São páginas de dias maus aos quais consegues transmitir uma luz muito própria com o teu dom de bem escrever!
ResponderEliminarPorque gosto! só é pena as nossas enfermeiras já não usarem o famoso quepe, tão bonito, que lhes dava um ar tão arrumadinho e inspirava confiança a quem delas precisava. Obrigada. Beijo grande
ResponderEliminarAtravés de uma pequena crónica, ai o que seria de nós sem a literatura, o Artur consegue efabular sobre o mundo singular de uma zona restrita como são os cuidados intensivos. Deixou-me tranquila. Obrigada.
ResponderEliminarGostei muito da leitura. É sempre bom ver alguém a descrever a vida real com algum humor à mistura. A vida, não pode nem deve ser só lágrimas e suspiros.
ResponderEliminarGosto muito do que escreve, pena eu ter pouco tempo.
ResponderEliminarObrigado!
EliminarSerá o desprendimento do presente amargo e agreste deixando apenas a substância que te permite traduzir em linguagem estes cruzamentos tão diversos com memórias do passado? Vivi estes dois mundos enfermeira e bailarina que se encontram em quase tudo, diferem apenas em técnicas e formas de comunicar: a palavra ou o gesto, ou tudo. Dançamos em pontas como as tuas bailarinas russas ou deslizamos sem pressas e sem pausas em emergências onde concentração e atenção não permitem tolerâncias. Nunca consegui escolher entre um e outro até a família crescer. Continuei como enfermeira. Impressiona-me como tão bem captaste momentos que agora vives. Quando se ama a vida sob todas as suas formas, passado e um presente que nos aprisiona e encerra, olhamos à volta e encontramos a beleza que liberta. Obrigada pelo que nos ensinas.
ResponderEliminarNão imaginas o bem que me fizeste com este teu texto de enfermeira/bailarina, tão sensível, tão amigo. Obrigado também com os teus ensinamentos preciosos.
EliminarComovi-me!... "O amor é um lugar estranho", e também a dor. No confinamento de cada um de nós, não deixemos de estar atentos aos passos de dança dos outros e aos nossos!
ResponderEliminarHumano. Brilhantemente humano.
ResponderEliminarAmigo, não sei se o meu comentário ao t Blog foi emitido(percebo pouco destas coisas...��). Assim, repetindo-me, deixo-te o meu testemunho do quanto me dá prazer ter acesso ao q escreves. Continua a dar um pouco de Luz a estes dias com a tua escrita.
ResponderEliminarObrigada pela partilha, por essa sensibilidade transmitida através da escrita.
ResponderEliminarSentimos um abanão com esse bailado, em relação a esse mundo vivido e não imaginado.
ResponderEliminarA realidade do momento ja virou a pagina, mas ficou-nos esta extraordinária visão de paciente- observador da cidade e do campo, transposta para uma tela onde o engenho transformador sobressai.
ResponderEliminarUm belo texto, como sempre.... Adorei a descrição da relação de semelhança entre o modo de pisar da bailarina no palco e o da enfermeira no chão do hospital...Folgo muito por sentir que tudo está a correr bem.
ResponderEliminarComoveu-me este seu escrito, Artur Gonçalves. Pela sua sensível e espirituosa observação e pela acção dos intervenientes!
ResponderEliminarEm confinamento, a dureza dos dias e noites, transformadas pela a escrita em fábulas graciosas, realistas sim, mas encantadoras !
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