![]() | |
|
«Nos dias que se seguiram ela quis que nos encontrássemos na Basic Sight. Fechámo-nos na sua sala e ela sentou-se ao computador, uma espécie de televisor com um teclado, muito diferente daquele que havia algum tempo mostrara a mim e às meninas. Carregou no botão de abertura, meteu retângulos escuros dentro de blocos cinzentos. Aguardei, perplexa. No ecrã apareceram soluços luminosos. Lila começou a bater no teclado, fiquei de boca aberta. Nada que se pudesse comparar a uma máquina de escrever, mesmo que fosse elétrica. Ela acariciava as teclas cinzentas, com as pontas dos dedos e o texto nascia no ecrã em silêncio, verde como erva acabadas de despontar. Aquilo que ela tinha na cabeça, agarrado a qualquer córtex do cérebro, parecia derramar-se para o exterior por milagre e fixar-se no nada do ecrã. Era potência que apesar de passar pelo ato, continuava a ser potência, um estímulo eletroquímico que se transformava imediatamente em luz. Pareceu-me a escrita de Deus como ela devia ter sido no Sinai, no tempo dos mandamentos, impalpável e tremenda, mas com um efeito concreto de pureza.»Elena Ferrante, História da menina perdida (2014) [Vol IV, cap. 101, pp.273-274]
Tudo nasceu numa mera sala de aulas do antigo edifício bizantino de traçado ortodoxo ali às Chagas, onde em tempos funcionara a embaixada russa dos czares. Era-nos proposto solver um problema de lana-caprina e esquematizar todas as fases da sua resolução através da representação gráfica num ordinograma devidamente submetido a um conjunto de símbolos normalizados, fornecidos pela linguagem Cobol. O diagrama esquemático explicativo da sequência de operações em curso era depois traduzida passo a passo em fórmulas matemáticas precisas, com recurso à numeração binária, em cartões perfurados confiados de seguida ao computador.
Quando me mudei de armas e bagagem para a Faculdade de Letras da Clássica, os personal computers ainda não estavam na moda. Bati todos os meus trabalhos académicos com o teclado HCESAR novinha em folha que nem sequer era elétrica. Outra realidade que a vindoura tornaria obsoleta. Só troquei o matraquear estrepitoso da máquina de escrever pelo processador silencioso de texto do meu primeiro comutador pessoal muito mais tarde, quando passei a frequentar a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Nova. Uma mutação épica indescritível, que me catapultou definitivamente da noite para o dia para o domínio eletrónico cósmico do luminoso digital.
O computador parecido com um televisor antigo, munido dum teclado como o das máquinas de escrever e dum apêndice de navegação chamado rato já desapareceram do meu horizonte de operações. Levaram consigo a enorme torre de armazenamento de dados e as disquetes de armazenamento de dados. Já me rendi à mobilidade dum portátil. Abençoadas ficções memorialistas mais ou menos autobiográficas postas ao dispor dos leitores, a ajudá-los a recordar as mudanças constantes do quotidiano que a anamnese real não regista. Reviver, v.gr., o esforço mental sentido em tempos para plasmar num fluxograma como fazer uma torrada ou fritar um ovo.
Cartão perfurado IBM não usado |
Que extraordinária memória tão bem descrita!
ResponderEliminarUma lição do antes e do agora.
Sabe bem fazer parte do grupo de pessoas que tem acompanhado o desenvolvimento da informática na ótica do utilizador… como eles dizem…
Há memórias que são mais persistentes a ficar, o que significa terem tido algum impacto na nossa formação...
Eliminar