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Páris & MenelauKalliadès, figuras vermelhas de argila (c. 490-480 aec) |
Μῆνιν ἄειδε θεὰ Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος
οὐλομένην, ἣ μυρί᾽ Ἀχαιοῖς ἄλγε᾽ ἔθηκε,
πολλὰς δ᾽ ἰφθίμους ψυχὰς Ἄϊδι προΐαψεν
ἡρώων, αὐτοὺς δὲ ἑλώρια τεῦχε κύνεσσιν
οἰωνοῖσί τε πᾶσι, Διὸς δ᾽ ἐτελείετο βουλή,
ἐξ οὗ δὴ τὰ πρῶτα διαστήτην ἐρίσαντε
Ἀτρεΐδης τε ἄναξ ἀνδρῶν καὶ δῖος Ἀχιλλεύς
Dizem que o fundador da Paideia helénica terá nascido em Esmirna e vivido em Quios, que seria um aedo/rapsodo/compilador cego, que terá criado em data incerta a obra prima/primeira do cânone literário ocidental. A tradição dá-lhe o nome de Homero e assegura ser o autor irrefutável da Ilíada, um longo poema épico de 15 693 versos em hexâmetros dactílicos ou heroicos, distribuídos por 24 livros, um por cada letra do alfabeto grego. A ação remonta à lendária Guerra de Troia travada cerca de 1300-1200 AEC e terá sido gizada oralmente ou por escrito à volta de 800-700 AEC. Entre uma e outra baliza temporal, há um hiato de 400 anos de escuridão, a chamada Idade das Trevas, a separar os derradeiros momentos da Cultura Micénica dos inaugurais da Cultura Grega, aqueles em que os mitos/lendas ancestrais deram passo às histórias formatadas na Era Axial, i.e., a sistematização das religiões e da criação dos principais géneros poéticos idealizados em verso e prosa.
Ao invés do que se costuma dizer, a Ilíada não trata na sua totalidade do relato minucioso dos dez anos do assédio, conquista e incêndio de Ílion. Nem sequer há referências ao famoso Cavalo de Troia, dado que o seu aparecimento só sucederá no final do conflito sangrento duma década travado entre Gregos e Troianos. O núcleo central da efabulação decorre no final do nono ano do cerco da cidade e não ocupa mais do que cinquenta dias, condensados em pouco mais duma semana. Tudo começa no primeiro verso com a menção à cólera de Aquiles, o Pelida, e culmina no postremo com os funerais de Heitor, o domador de cavalos. Por outras palavras, os heróis épicos por excelência do poema, representantes das duas forças beligerantes pela posse da Pólis situada às portas do Helesponto, a meio caminho do Mar de Mármara, do Estreito do Bósforo e do Ponto Euxino, no limite estratégico entre os continentes europeu e asiático, fronteira natural entre o mundo ocidental e o oriental.
Identificados os actantes fulcrais da refrega homérica, há que apontar os periféricos, os adjuvantes/oponentes de cada uma das forças em presença, bem como do seu contributo na trama. Aquiles dos pés ligeiros recusa-se a combater mais os seus guerreiros ao sentir-se ofendido por Agamemnon, rei de Micenas e líder dos sitiantes, enfraquecendo assim o exército aqueu e levando-os a uma derrota. Este havia-o despojado duma escrava que lhe coubera como butim duma escaramuça recente e só retoma quando o seu amigo Pátroclo é morto num duelo pelo primogénito de Príamo, o rei de Troia. Como vingança, retoma o combate e mata igualmente numa luta de corpo a corpo Heitor, príncipe herdeiro da cidade assaltada. A cólera inicial do filho da deusa Tétis e do mortal Peleu converte-se num apaziguamento final, pondo assim termo ao Poema Épico de Ílion, contado/cantado por Homero para registo pleno dos ouvintes e glória eterna dos heróis.
Quanto ao destino de Helena e Páris, os causadores da conflagração armada de gregos e troianos, bem como da própria cidade-estado que os acolhera, temos de o encontrar na imensidade de textos descritivo-narrativos em verso e prosa, registados em rolos de papiro e pergaminho, sobreviventes à voragem inclemente do tempo com dois mil e oitocentos anos de existência. Procurá-los sobretudo na Odisseia, a epopeia do regresso acidentado de Ulisses a Ítaca, ao encontro de Penélope e Telémaco, a mulher e o filho que já não via há duas décadas, composta também ela por Homero, o grande cosedor de cantos heroicos do ciclo troiano. Feitos inesquecíveis de seres semidivinos a quem deu vida nos seus dias e continuam vivos nos nossos, omnipresentes na memória coletiva de todos aqueles que continuam a ouvir as suas vozes distantes através das palavras registadas nas páginas do livro que temos entre mãos. Assim o prazer pela leitura continue vivo nas nossas práticas quotidianas.

Como dizia um amigo, o homem não dispensa viver sem mitos e heróis. Nos nossos dias, infelizmente, o equilíbrio entre as forças do bem e do mal mergulha no cinzento opaco arrastando com ele os heróis e mitos...
ResponderEliminarE os mitos pertencem aos deuses e as epopeias aos mortais, heróis se forem vencedores e anti-heróis se vencidos. O problema está em saber (como disse/cantou alguém) quem venceu e foi vencido. Então como agora, os paralelismos são gritantes.
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