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Mozart score written when 8 years old Art Print |
Curriculum Musicæ
Na era longínqua em que frequentava a catequese e ia à missa todos domingos, tive uma catequista já entrada na idade, solteirona por opção ou viúva por revés, que me dava umas aulas de piano depois da doutrina e uns conselhos suplementares de catolicismo cristão nos intervalos musicais. Nessa altura, andaria na segunda classe do primário e no primeiro do catecismo, rondaria então os 7/8 anos. Depois vieram as férias de verão e, no início do novo ciclo letivo, a Senhora D. Maria do Rosário foi substituída por uma outra instrutora cujo nome se me varreu por completo da memória. O mesmo posso dizer da minha aprendizagem pro bono então recebida. Exceptuo umas tantas palmadas nas mãos para corrigir posições.
Por essa altura, frequentei um coro de meninos do ensino básico da cidade. Os ensaios eram semanais e efetuavam-se na escola central do burgo, o que nos obrigava a fazer uma longa caminhado desde o Bairro da Ponte até ao Posto da Polícia junto ao Parque da Rainha. Cantava-se mais durante o percurso do que na sala apontada para tal. Destas aventuras corais, resultou sempre uma agitação infantil a tocar a indisciplina, que levou o prof. Dinis a cancelar o projeto. guardei no ouvido o malfadado Papagaio pena verde, repetido à exaustão sem grandes resultados polifónicos a assinalar. Aprendi também à minha custa que uma 1.ª voz como a minha nunca se daria bem ao lado duma 2.ª cantada por um colega de timbre mais espigadote.
De degrau em degrau, o ciclo preparatório abeirou-se, o Canto Coral instalou-se e o P.e Renato impôs-se. Durante dois anos, passei a ter 1/4 de hora por aula de solfejo, notação musical e leitura de partituras, alternados com os 3/4 de hora restantes de anedotas, apartes e historietas contadas a propósito/despropósito de tudo e de nada. Recordo os momentos hilariantes em que relatava a torto e direito as mirabolantes travessuras do Menino Tonecas. Esqueci-me de todas, mas as gargalhadas provocadas ainda hoje me ecoam nos ouvidos. Muito de vez em quando, lá punha a turma a entoar uma cantiguinha popular que pouco tinha a ver com a teoria musical já aflorada. O uso regular do diapasão gerava uma risada geral logo seguida do justo raspanete. Tempos épicos esses em que a risota coral reinava.
A escassa formação musical até então bebida a conta-gotas secou a valer no secundário. Salvou-se, mesmo assim, com os apontamentos desviantes às aulas de História ou Português do Dr. Bento Monteiro. Por um qualquer motivo dei com ele a falar do sucesso que Janette MacDonald & Nelson Eddy tinham obtido em Hollywood nas décadas de 30-40. Palavra puxa palavra, o confronto passou a fazer-se entre Mario Lanza e Enrico Caruso. Este último tenor tido por si como o vulto maior do canto lírico de todo o sempre, a par de Maria Callas como soprano. Chegou a levar um velho gira-discos para a sala, o que nos permitiu escutar pela primeira vez as vozes de alguns deles. A si se terá devido também a realização de alguns concertos de câmara e orquestra juvenil no ginásio da escola, os primeiros da minha vida.
O meu convívio áureo com a música deu-se fora do ambiente escolar. As salas de aula foram trocadas pelas salas de concerto da capital, quando por ali andei no encalço dum grau académico superior. Não deixei escapar uma Ópera no Coliseu e no Trindade, um Ballet na Gulbenkian e no São Luís, uma Audição no São Carlos, uma Zarzuela no Tivoli ou um Concerto onde quer que o houvesse. Fazia-o com um ou outro colega mais sensibilizado para a arte melómana das notas cantadas, dançadas ou tocadas. Pena ter perdido os programas e folhas de sala mantidas na altura com tanto cuidado. Ficaram-me na memória as imagens sonoras e visuais então bebidas com avidez. Fugiram-me os nomes de muitos dos compositores, intérpretes e diretores que nesses instantes singulares lhes deram corpo e alma.
Na fase laboral seguinte, revezei a música gravada com um ou outro concerto dado aqui nestas bandas austrais onde me fixei. Na etapa quase jubilada, alterei o cenário. Esqueci-me do dedilhar meteórico pelo teclado do piano acústico vertical de sala no final das lições de catecismo e dediquei-me a reviver as poucas luzes ainda cintilantes das aulas do segundo ciclo me tinham a custo acompanhado. Integrei por um ano o grupo coral da UAlg e transitei depois de armas e bagagens para o Ossónoba. No primeiro, relembrei alguns trechos líricos ouvidos em tempos ao vivo e a cores, no segundo domei a voz a um canto mais mais rigoroso e variado. Estou há um par de meses no Cantate Domino, um grupo de câmara mais restrito de música sacra, numa tentativa de reforço do curriculum musicæ ideal.

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