«Eu, súbdito feliz da Europa Federada, recebo todos os dias o recado subliminar: “Alegra-te, cidadão, que estás no melhor dos mundos. Tens a Federação e a prosperidade; estás, enfim, no Jardim das Delícias. Agora goza-o, paga os impostos, olha para o ecrã de televisão e não chateies”».
João Aguiar, O jardim das delícias (2005)
São curiosas as voltas e reviravoltas que certos textos dão até chegarem à sua forma definitiva. Um deles foi idealizado por João Aguiar e inserido na coletânea de contos O canto dos fantasmas (1990). Dava pelo nome auspicioso de «Enfim, o paraíso» e ocupava a última posição duma viagem de sete jornadas ao país dos fantasmas, espíritos inquietos que escapam aos estereótipos dos sudários, correntes, gemidos e negrumes espectrais, para se aproximarem do universo das obsessões humanas que habitam o nosso imaginário individual e coletivo. Por essas datas, as assombrações dos tempos coloniais africanos ainda habitavam a memória do cantador de histórias e da de muitos dos seus ouvintes mais atentos. No horizonte perfilavam-se já outras promessas edénicas ancoradas no velho continente, então entendido como o melhor dos mundos. O rapsodo assenta arraiais numa associação federada de estados, concretizada numa fase futura possível do mundo real presente, mas desprovida de todas as miragens idílicas acalentadas no passado. O sonho da eutopia imerge e o pesadelo da distopia emerge.
O percurso acidentado desta antevisão pessimista de espaços-tempos ficcionados instala-se quando, nove anos depois, a segunda edição revista do texto juntava ao grupo das historietas meio fictícias / meio factuais iniciais outros modos de divertimento puro ou de fantasia ingénua e inocente, privando-a, porém, da companhia indesejada desse el dorado apetecido com nome de paraíso. O contista excluíra-o da estrutura remodelada da escrita por não se integrar na lógica do livro ou por ter obedecido a um impulso inexplicável para a razão. O leitor até pode discordar do autor mas a decisão final do ato criativo está sempre nas mãos do artífice que dá vida à obra. O conto é devolvido ao convívio do público em tiragem autónoma e convertido em novela/romance, com o título alternativo de O jardim das delícias (2005), inspirado no tríptico homónimo de Hieronymus Bosch hospedado no museu do Prado, explicitado no corpo do relato e decalcado na capa do volume impresso que a aloja. Um regresso há muito esperado, ampliado com algumas páginas preludiais dos factos compostos em três andamentos musicais (adagio – andante – allegro vivace) e submetido algumas adaptações discursivas pouco pertinentes para a sua perceção global. A partitura terá ganho em quantidade mas perdeu decididamente em qualidade.
Anuladas as diferenças forjadas nas duas variantes de trajeto, a breve e a longa, o fio condutor comum desenha-nos uma crónica exemplar de antecipação política, erigida numa federação europeia moribunda, colocada entre o Jardim do Éden descrito no Génesis e o Juízo Final previsto no Apocalipse de São João, um aviso claro de como as euforias paradisíacas se podem transformar em disforias infernais. João Aguiar, nascido em Lisboa em 1943, licenciado em jornalismo pela Universidade Livre de Bruxelas, elegeu Adriano Almeida | João Carlos como um alterego novelesco privilegiado, apresentando-o como nascido em Lisboa em 1990 e ser um dos mais prestigiados redatores do jornal Eurovox. A fama advinha do facto de ter sido o primeiro jornalista a visitar o satélite natural da Terra em 2012-2013, onde efetuara uma reportagem sobre o início da Estação Lunar 1. A ação do conto situava-se entre 10 e 17 de julho de 2032, uma quarta-feira (dia de Mercúrio, o deus da comunicação) e uma terça-feira (dia de Marte, o deus da guerra), narrando-nos, premonitoriamente, a última semana da FE, criada em 2010 e herdeira remota da CECA-CEE-UE.
Em termos literários, a fábula pode ser entendida como uma espécie de ficção científica atualizada, onde o 4.º Poder dos mass media nos alerta para o perigo de a idade democrática, aberta com a queda da Bastilha em 1789, dar lugar à idade caótica, viabilizada com a queda do muro de Berlim em 1989. Dois séculos decisivos de mutação dum liberalismo militante num neoliberalismo triunfante. À distância duma geração, a catástrofe prevista pelo vidente nunca esteve tão perto de se realizar. Basta estar atento aos noticiários diários difundidos por jornais, rádios e televisões. As manifestações de descontentamento grassam um pouco por todo o lado. A distância cavada entre os diversos parceiros da Europa das regiões e subregiões, estados-nação e estados de nações, dos países federados, confederados e unitários não deixa de crescer. As bombas e petardos ouvem-se dentro e fora da ficção. A sociedade do bem-estar periga. O canto dos fantasmas prospera e o jardim das delícias definha. Reguemo-lo, antes que se transmude num vasto vergel ressequido ou canteiro sem flores…
NOTA
Texto publicado há cerca de duas primaveras e meia no Pátio de Letras e reposto num momento em que as antevisões do autor se tornam cada vez mais atuais. Lidos e relidos os livros, fique o alerta dum vulto grande das letras portuguesas que a lei da vida quis levar antes de tempo, poupando-o aos espetáculos lamentáveis com que a Europa nos tem brindado nestes nossos dias tão conturbados de início de século e milénio.