1 de fevereiro de 2015

A força das palavras

Ceci n'est pas un président

A presidente brasileira gosta de ser tratada por presidenta. Está no seu direito. Assim esse desejo ultrapasse a fase dum modismo passageiro e se converta num uso corriqueiro aceite por todos. Sem reservas. Mais tarde, quando o país voltar a ter um presidente, escusamos de nos admirar se este reclamar o tratamento de presidento. Estará também no seu pleno direito de o fazer. O politicamente correto, se não quiser transformar-se em politicamente incorreto, terá de admitir com naturalidade estes preciosismos linguísticos de equilibrar o fiel da balança que mede o peso pragmático das palavras.

Quando estas questões de lana-caprina se convertem em guerras de alecrim e manjerona, até nos esquecemos que as línguas são mecanismos feitos para comunicar. Esquecemo-nos que os nomes uniformes, ou comuns de dois, se não podem confundir com os biformes, ou comuns com dois géneros. Por vezes, até nos esquecemos que o conceito de masculino/feminino é convencional e que varia arbitrariamente de língua para língua. Só assim se entende que «la crêpe et le cidre» dos franceses se converta, mutatis mutandis, em «o crepe e a cidra» dos portugueses. A gramática, de facto, não tem sexo.

Palavra puxa palavra, e ao trinómio presidente | presidenta / presidento, ainda podemos juntar alguns casos mais de ménage à trois lexical. Agora que se começa a falar na candidatura à presidência da república da ex-ministra da saúde e da igualdade, é bem provável que o assunto passe a ocupar a agenda dos mass media nacionais sempre atentos ao irreal quotidiano. Se a moda pegar, ainda nos arriscamos a encontrar doentas e doentos nos hospitais, parentas e parentos na família, lentas e lentos nas universidades. E por aí fora, sem parar, até onde nos levar o engenho e arte de palavrear o absurdo. 

3 comentários:

  1. E falou o especialista em linguística, que tem o dom da palavra! Eu já desisti de entrar em querelas em geral sobre a nova ortografia, que é do que se trata para mim... Quando me enviam "mails" com exemplos do género "de fato, o cagado entrou na água", fico admirada como as pessoas não cuidam, pelo menos, de ir verificar se é isso que está estipulado para não fazerem figura de idiotas. Só aos amigos do peito continuo a responder, quando me questionam porque escrevo segundo a nova redação. A empresa onde trabalhava adotou a nova escrita e eu habituei-me, tratando de tirar as dúvidas no Priberam quando não tenho a certeza. Se o acordo ortográfico não for avante, considero-me minimamente inteligente para regressar à ortografia anterior a 1990. Não entendo tantos exemplos mal amanhados, que não correspondem à realidade ortográfica em vigor. O C, que se retira das palavras onde não é pronunciado, é a justificação para a origem latina da língua portuguesa desaparecer... Haja paciência! Lembro-me que, quando vivi em Londres três meses, há 44 anos, não se encontrava a palavra Pharmacy em lado nenhum, mas sim Apothek, assim como se dizia Hollidays e não Vacations, que se impôs a partir do inglês dos americanos. Só não entendo porque a celeuma começou tão recentemente, se o Acordo data de 1990...

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  2. A questão ortográfica é para mim um assunto arrumado. Nem sequer me dou ao trabalho de apontar os erros grosseiros que se continuam a cometer ao abrigo da norma de 1945-1973. A de 1990 durará o tempo que tiver de durar, numa certeza, porém, é que um dia também será substituída por outra mais próxima da língua que então se falar. As convenções valem o que valem. O problema reside em saber se a estamos a aprender pela primeira vez ou se estamos a substituir uma aprendizagem antiga por uma mais recente. O espírito conservador que o tempo nos vais dando fala mais alto e passamos a ser defensores do indefensável.
    A história presidencial que aqui chamei à colação é de outra ordem. Tão falível como a anteriormente referida. É dar soluções para uma não questão. O género nestes casos é identificado de modo descontínuo pelo determinante que antecede a palavra em causa, o «o» e o «a». Tão simples como as coisas simples. Aprendi este mecanismo na instrução primária. No século passado.
    Outros assuntos de lana-caprina ligados ao linguajar que agora se pretende politicamente correto podiam ser equacionados. Um dia talvez o faça. Limito-me a dizer que a gramática não tem sexo. Quem o tem são as pessoas, que agora se diz terem género. Modismos passageiros que um dia serão enviados para o caixote de lixo da história, como costuma acontecer com todos os modismos.

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  3. Muito bom texto, realmente esta é uma não questão de género lexical.

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