«—Bienvenida al Cementerio de los Libros Olvidados, Isabel [...] Este lugar es un misterio. Un santuario. Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él. Cada vez que un libro cambia de manos, cada vez que alguien desliza la mirada por sus páginas, su espíritu crece y se hace fuerte. En este lugar los libros que ya nadie recuerda, los libros que se han perdido en el tiempo, viven para siempre, esperando llegar a las manos de un nuevo lector, un nuevo espíritu.»Carlos Ruiz Zafón, El juego del Ángel (2008)
Alguém disse e eu registei na memória que escrever um bestseller é tarefa fácil. Pode acontecer a qualquer um num qualquer momento de inspiração criativa. Repetir a proeza outras vezes sem cair nos perigos do déjà vue é que se torna particularmente difícil. Carlos Ruiz Zafón tem conseguido manter-se nas top-listas dos escritores com maior êxito editorial à escala planetária, apesar de andar a replicar um mesmo clichê diegético há mais dum quarto de século. Ensaiou o modelo na Trilogia da neblina (1993-1995), aplicou-o na Marina (1999) e canonizou-o nas quatro peças novelescas inseridas no Cemitério dos livros esquecidos (2001-2016). O segredo tem residido no preenchimento dum esquema narrativo estereotipado como se o tivesse acabado de inventar. A mestria utilizada neste expediente caiu no goto do público, indiferente à vulgaridade dos lugares-comuns em que está ancorado. O prazer estético de rever os heróis de histórias contadas e recontadas à exaustão só terminará quando se chegar a um ponto sem retorno. Aquele em que já não houver mais segredos dignos desse nome para revelar ou dilatar.
A saga dos livreiros sediados na rua Santa Ana da cidade condal chegou ao fim. O lançamento do derradeiro volume da tetralogia mais falada no momento acaba de ocorrer em todo o mundo hispâ-nico. Um dia destes também chegará às mãos de todos nós, vertido para os diversos idiomas da aldeia global. Provavelmente ainda antes do Natal. Entretanto, fico-me com as impressões que os títulos já publicados me proporcionaram. Depois de ter decifrado os mistérios contidos nas páginas d’A sombra do vento (2001), voltei-me para as aventuras de intriga, romance e tragédia anunciadas na contracapa d’O jogo do Anjo (2008). O fascínio e o espanto foram uma constante da visita. Demorada. Li o texto muito lentamente. Degustei-o com toda a calma, como se dispusesse de todo o tempo do mundo e ninguém me pressionasse. Queria retardar a chegada do fim. Tratava-se também duma história de livros malditos e do homem que os redigira, duma história de amor e ódio, de sonhos e pesadelos. De como idealizar uma obra de sucesso sem qualidade para ser exposto nas vitrinas das livrarias ou uma obra-prima sem leitores para ser condenada ao esquecimento. Eis o dilema a que o protagonista da fábula e fabricante de contos é obrigado a enfrentar. Atuar na dependência/independência das imagens refletidas na infinita galeria de espelhos que dão corpo e sentido aos enigmas da Lux Æterna. Um labirinto a que só alguns têm acesso. E mais não digo, que as palavras registadas nos livros do livro serão sempre melhores do que as minhas.
No processo de descoberta dos fios condutores do relato de relatos, repartidos por três atos e um epílogo, em vão procurei o rasto de Julián Carax ou logrei seguir as pisadas de Daniel Sempere. A linha cronológica urdida na trama tinha recuado uma geração inteira de vidas ficcionadas e só me dei verdadeiramente conta do facto já bem entrado na intriga das intrigas. A tapeçaria resultante deste entrelaçar constante de fadários autónomos, separados/ligados estruturalmente entre si pela alternância incansável de espaços-tempos, apresenta-nos um aspeto de inacabada execução, que só os episódios vindouros ainda por compor poderão resolver. O destino de David Martín, o autor-fantasma da novela de don Pedro Vidal e do panfleto religioso de Andreas Corelli, o autor consagrado de duas séries folhetinescas góticas compiladas n’Os mistérios de Barcelona e n’A cidade dos malditos, fica suspenso até melhor oportunidade. Talvez então tenhamos acesso ao mais profundo âmago da sua existência, Aos abismos insondáveis próprios dum ser habituado a lidar com o transcendente e com os segredos da imortalidade, dum ser semelhante ao Dorian Gray retratado por Oscar Wilde, impedido de envelhecer um só dia da sua vida. A hesitação fantástica situada entre as dimensões naturais do estranho e as sobrenaturais do maravilhoso ficam no ar. A curiosidade de clarificar a dúvida é adiada até uma nova etapa da sequela. Assim se faz render a fruta nesta arte de preparar os triunfos literários à distância dos anos. E parece que está tudo dito.