7 de novembro de 2016

Carlos Ruiz Zafón, a sombra do vento e o cemitério dos livros esquecidos

«Pues bien, ésta es una historia de libros […] de libros malditos, del hombre que los escribió, de un personaje que se escapó de las páginas de una novela para quemarla, de una traición y de una amistad perdida. Es una historia de amor, de odio y de los sueños que viven en la sombra del viento.»
Carlos Ruiz Zafón, La sombra del viento (2001)
Quando me foi recomendada A sombra do vento (2001) de Carlos Ruiz Zafón, fiquei com vontade de a visitar de imediato. A sugestão partira duma amiga de longa data que tem uma relação de grande cumplicidade com a cultura e teima em manter acesa uma paixão incondicional pelos livros e pelas leituras. Manias. Soube depois que já estava traduzido numa trintena de idiomas e publicado numa quarentena de países. Obtivera inúmeros prémios internacionais e as mais espantosas críticas da imprensa planetária. O romance transformara-se num grande êxito de vendas à escala global e o autor numa celebridade no universo das letras hispânicas atuais na viragem de século e de milénio. Subconscientemente, pousei o volume que tinha entre mãos no expositor da livraria e parti à procura de títulos mais discretos. Pretexto esfarrapado para afastar os fantasmas dos preconceitos que os fenómenos editoriais de sucesso massivo sempre me provocaram. Não consegui resistir a uma segunda investida e trouxe-o para casa sete anos volvidos. Resolvi testar a poeticidade da obra-prima que fazia correr tanta tinta em toda a parte e lancei-me à tarefa de desvendar os seus mistérios há tanto tempo escondidos. Fi-lo no idioma em que fora concebido para que o efeito saísse reforçado. Rendi-me ao poder inebriante das palavras que me fizeram companhia enquanto durou a visita. Incondicionalmente.

Voltei ao seu convívio noutras ocasiões. Sempre que um novo pilar se vai acrescentando ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Um par de vezes. A sensação de maravilhamento é invariável. A viagem pelo seu interior flui como água cristalina que vai da nascente à foz sem escolhos indesejados a espreitar em cada reentrância de trajeto. Retomei-o agora que o quarto e derradeiro acaba de ser anunciado. Ao que as entidades promotoras da edição lá vão avançando, virá carregado de surpresas que esclarecerão todos os segredos acumulados ao longo das múltiplas histórias que dão corpo à saga. Publicidades à parte, cá fico a aguardar que a Livraria Semper prossiga de portas abertas no coração da cidade condal de Barcelona, para que os livros nela postos à disposição dos clientes nos continuem a contar os destinos guardados no seu interior e lhes voltem a dar a visibilidade que merecem. Que nos revelem outros autores malditos ou amaldiçoados pelas vicissitudes dos destinos malfazejos com que se foram cruzando. Que nos permitam seguir os itinerários dos seus heróis, anti-heróis ou uns e outros em simultâneo e sem preconceitos de espécie alguma. Que nos confiem as suas fortunas e adversidades arremedadas como se de facto tivessem acontecido. Plausíveis ou pouco prováveis. Verosímeis ou pouco fiáveis. Para o caso tanto dá. Que nesta esfera do faz-de-conta a imaginação é que conta.

História dum enigma contido no próprio título do relato. Uma ficção dentro duma ficção. Um livro dentro dum livro. O composto por Julián Carax e o aproveitado por Carlos Ruiz Zafón. O autor imaginado de antibestsellers condenados ao fracasso e autor real de bestsellers destinados ao sucesso. O primeiro preocupado em apagar do mundo a memória da sua existência o segundo empenhado em espalhar aos quatro ventos a força da sua presença. Um a destruir os exemplares restantes dos poucos que conseguira vender. O outro a espalhar aos sete ventos os assombros da sua escrita publicado os quatro cantos da terra aos milhares de milhares ou milhões. Curiosos espelhismos estes ou simetrias criadoras com que a literatura se vai fazendo-desfazendo-refazendo sem fim à vista. Réplicas de réplicas a mediar as paixões confrontadas. É também uma história paralela de amor e morte entre os dois coprotagonistas dum duplo relato com título comum, o autor do romance maldito encontrado num refúgio de livros e trevas situado nas entranhas mais profundas das Ramblas da capital catalã e o do seu guardião oficial nas páginas do livro que temos entre mãos. Daniel Sempere recupera-o do esquecimento a que estava votado e com ele traça uma via pessoal de aprendizagem moldada pelos percursos de vida que já haviam sido trilhados pelo seu mentor, à distância de duas guerras mundiais e duma outra civil de permeio. Possibilita ao indivíduo sem rosto renascer de entre os finados com uma nova identidade. Resgata-lhe a memória das cinzas a que as chamas purificadoras o haviam votado. Dá-lhe ânimo para recomeçar a desenhar histórias de vida contadas com a magia das palavras perseguidas/encontradas-semeadas na sombra do vento.

2 comentários:

  1. Um romance repleto de encantamento, mesmo quando o mau se confronta com o bom, revelando-nos situações reais acompanhadas de ficções criativas. Três romances, aliás, pois todos nos conduzem ao Cemitério dos Livros Esquecidos através de tramas bem urdidas. Seja bem-vindo o quarto!

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  2. Que interessante e curioso que parece ser...

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