«– Ese tablero, como puedes apreciar, es el mapa de Europa. Es un juego. También es un desafío. Y es parte de mi trabajo.»
Roberto Bolaño, El Tercer Reich (2010)
Lidos os livros de que gostamos, só nos resta voltar a abri-los mais uma vez para uma nova visita ou fechá-los por uns tempos e encetar um longo diálogo silencioso com as ideias que despertaram em nós. Se a conversa for frutuosa e a quisermos preservar para uma memória futura, podemos sempre confiar excertos dessa amena cavaqueira a uma folha de papel. Para ser mais preciso neste admirável mundo novo de virtualidades digitais, transformar as palavras escritas com tinta em impulsos elétricos de uma página word com carateres escolhidos de acordo com a inspiração do instante e o assunto tratado.
Roberto Bolaño tem essa rara aptidão de cativar o leitor, de o desafiar a trocar confidências com as personagens dos universos por si inventados, à sombra de casos de vida real com que se cruza todos os dias sem lhe prestar uma atenção especial, tão banais lhe parecem. Pessoalmente, já havia saboreado essa sensação com o 2666 (2004), o último romance de romances ou novelas que nos ofertou já a título póstumo e lhe abonou o passaporte para um muito justo reconhecimento internacional. O mesmo efeito de captura total voltou a ocorrer com O Terceiro Reich (2010), também ele deixado inédito, apesar de ter sido arquitetado por volta de 1989, no início da sua fulgurante carreira de artesão de relatos em prosa. Ignoramos as razões que o terão levado a deixá-lo esquecido, talvez incompleto ou abandonado, no meio de outros manuscritos em boa hora descobertos, que os fiéis depositários literários têm vindo a converter em letra de forma e a confiar ao convívio de todos nós. A partilha tem sido preciosa.
O argumento é fácil de traçar. Centra-se numas breves férias de verão que um jovem casal de alemães, na casa dos 25 anos, goza na Costa Brava espanhola. As peripécias que marcaram a estada no hotel Del Mar, os encontros e desencontros com turistas e nativos, as aventu-ras e desventuras experienciadas por todos, as conhecidas e as ima-ginadas, estão meticulosamente registadas no diário do protagonista, que constitui, em suma, o romance que temos entre mãos. Como relato de primeira pessoa que é, a sua descoberta proporciona o mistério, a dúvida, a hesitação. Um cheirinho policial a estimular o enredo. A subjetividade de informação impera. O ponto de vista do narrador a alternar aqui e ali com fragmentos de discursos proferidos em direto pelos restantes intervenientes da intriga. As certezas de uns a colidirem com as incertezas de outros. A fronteira entre amigos e inimigos muito difícil de traçar. Sobretudo quando se sentam em lugares opostos duma mesa de jogo, com um tabuleiro hexagonal e muitas fichas de permeio, quando se transmudam em estrategas rivais dum wargame que dá pelo nome provocador de Terceiro Reich, quando se convencem que o destino dos homens pode ser vivido duas vezes e de forma diferente. Os combates travados por ambas as partes pela vitória chegam a assumir o contorno duma luta de vida e morte. A imagem dos dois jogadores de xadrez filmados por Ingmar Bergman n’O sétimo selo a pairar insistentemente no meu imaginário particular, mas com um desfecho menos dramático. No final da contenda, o derrotado não é incorporado na procissão de flagelados como o cruzado medieval. Limita-se a regressar à Alemanha natal duas vezes vencida pelas forças aliadas, no palco real da II Guerra Mundial e no cenário fingido dum jogo de guerra social. O bélico e o lúdico lado a lado a comentarem as efemérides dum passado recente.
Mais do que uma incursão de nos meandros do defunto império germânico dos mil anos anunciados, duma apologia ou anátema aos princípios que nortearam a sua criação, abrigo e queda, este texto quase inaugural de Roberto Bolaño convida-nos a pisar as tábuas do teatro europeu contemporâneo e a rever os dramas que nele se representaram em meados do Séc. XX. Alerta-nos para a impossibilidade de reescrever a nosso belo prazer a História, de não estar ao alcance de nós a faculdade de comutar os desastres em triunfos ou de disfarçar os erros em sucessos. Afirma-nos que o destino das nações não se joga aos dados nem ao sabor dos caprichos da sorte e do azar, que os logros e malogros dos heróis e anti-heróis da gesta dum povo não podem ser refeitos por nenhuma vontade humana ou divina. Pensar o contrário é como se fôssemos fantasmas dum estado-maior fantasma a exercitar-se continuamente sobre tabuleiros de
wargames, como se fôssemos sombras sobre sombras, oficiais de faz de conta a zombar da legalidade dos factos feitos por homens de carne e osso. Esta a realidade nua e crua imposta à imaginação, mesmo quando posta ao serviço dos labirintos insondáveis da literatura.
NOTA
Os jogos de guerra andam por aí. Estão na moda. Imagina-se um determinado conflito mundial resolvido pela lei do mais forte e reequacionam-se novas estratégias, como alterar arbitrariamente a listagem dos vencedores e vencidos. Roberto Bolaño fê-lo muito à sua maneira n'O Terceiro Reich, texto que comentei há precisamente seis anos no Pátio de Letras. Lembrei-me de o trazer para aqui para uma releitura feita à luz do contexto bélico de palavras que agora se vão vivendo...