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MADRUGADA
[Lisboa, 25 de abril de 1974]
A noite vai alta e escura. A terra por debaixo da cidade emana um hausto fresco, os parques e os jardins abertos ao ar, húmidos como as narinas de um gato. Tudo está quieto, espesso sob a pelagem da noite sem estrelas, mas tão pouco velada. Ou velada lá tão alto que o resultado é esta quietude da cidade numa treva, um escrínio. Não está frio. Pelas quatro da manhã fez um jorro de vento, um único. Uma pancada de ar marítimo que avançou sobre as ruas baixas e os espaços abertos, cidade acima. A roupa meio seca estalou nas cordas, enfunando corpos, as copas das árvores moveram-se. A maré ia vazia. Empurrados pelo golpe de aragem os detritos estremeceram sobre a babugem suja e brilhante das orlas de cimento e de areia parda.
Um pequeno caranguejo negro desceu em direção às águas, estacou irisado no fervor amarelo da espuma, as duas tenazes sondando a viração do ar. Os grumos de pardais sobre os ramos insuflaram as penas e mudaram de asa as pequenas cabeças, de novo quietos como frutos. Dentro das casas os homens suspiram e mudam a postura por dentro do sono, mudam de sonho, enquanto os cães levantam a cabeça e estiram as orelhas e o olfato para o lado sul e do crepitar das ramas lá fora, deitando depois o focinho sobre as patas, os olhos ainda abertos na melancolia do alarme. Como que coberto de uma película viva, o asfalto reproduz os jorros de luz de um ou outro carro rápido por dentro das ruas desertas, e a dos candeeiros altos, lívida.
Sobretudo nos jardins públicos, praças arborizadas e cemitérios, a quietude é quase medonha. É sempre assim antes que a manhã raie, a menos que a chuva, a esta hora sempre miúda, venha pairar sobre estas formas tão dentro de si mesmas, juntando a este silêncio o seu silêncio, que tem outra leveza.
Há um carro de bois carregado de hortaliça que desce para perto do rio. O chiar do rodízio e o pousar rítmico, claro, dos cascos do animal, que só pode ser visto a esta hora, enchem a noite da sua certeza profunda, que para cada cidade sua noite. Aqui, há uma perenidade abafada. A rocha basáltica absorve os sons e prolonga-os num ronco atemporal, o respirar duma caverna subterrânea que os homens escutam dormindo, a alma negra do porto, da viagem.
Um galo canta, rouco, e outro. É ainda a secreta proliferação das traseiras, pátios, quintais, periferias internas de lixeiras e barracas. No rio há barcas onde um luzeiro hesita por detrás de um pano, ou da oscilação levíssima de um homem que se levanta do casco para comer, para urinar sobre a borda. Grasna um motor que hesita em pegar, crespo da humidade. Num cacilheiro quase vazio, duas mulheres dormitam uma sobre a outra, sem destino, sob aquela luz amarela.
Junto à linha do horizonte, sobre o mar, começa a lumiar um clarão. Vem branco, o sinal da aurora. Há muita névoa.
Há um carro de bois carregado de hortaliça que desce para perto do rio. O chiar do rodízio e o pousar rítmico, claro, dos cascos do animal, que só pode ser visto a esta hora, enchem a noite da sua certeza profunda, que para cada cidade sua noite. Aqui, há uma perenidade abafada. A rocha basáltica absorve os sons e prolonga-os num ronco atemporal, o respirar duma caverna subterrânea que os homens escutam dormindo, a alma negra do porto, da viagem.
Um galo canta, rouco, e outro. É ainda a secreta proliferação das traseiras, pátios, quintais, periferias internas de lixeiras e barracas. No rio há barcas onde um luzeiro hesita por detrás de um pano, ou da oscilação levíssima de um homem que se levanta do casco para comer, para urinar sobre a borda. Grasna um motor que hesita em pegar, crespo da humidade. Num cacilheiro quase vazio, duas mulheres dormitam uma sobre a outra, sem destino, sob aquela luz amarela.
Junto à linha do horizonte, sobre o mar, começa a lumiar um clarão. Vem branco, o sinal da aurora. Há muita névoa.
Maria Velho da Costa, Lucialima (1983: 11-12)