3 de abril de 2017

Argos, o cão de Ulisses

RHYTON

Pintor de Brygos, «Cabeça de cão» (séc. V AEC)
[Musée Jérôme Carcopino - Aléria (Haute-Corse - France)]


Reconhecimento & Fidelidade

Assim falaram entre si, dizendo estas coisas.
E um cão, que ali jazia, arrebitou as orelhas.
Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio
criara, mas nunca dele tirou proveito, pois antes disso partiu
para a sagrada Ílion. Em dias passados, os mancebos tinham levado
o cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres.
Mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente:
jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas,
até que os servos de Ulisses o levassem como estrume para o campo.
Aí jazia o cão Argos, coberto de carraças dos cães.
Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto,
começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas;
só que já não tinha força para se aproximar do dono.
Então Ulisses olhou para o lado e limpou uma lágrima.
Escondendo-a discretamente de Eumeu, assim lhe disse:

«Eumeu, que coisa estranha que este cão esteja aqui no esterco.
Pois é um lindo cão, embora eu não consiga perceber ao certo
se tem rapidez que condiga com o seu belo aspeto,
ou se será apenas um daqueles cães que aparecem às mesas,
que os príncipes alimentam somente pela sua figura.»

Foi então, ó porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta:
«É na verdade o cão de um homem que morreu.
Se ele tivesse o aspeto e as capacidades que tinha
quando o deixou Ulisses, ao partir para Troia,
admirar-te-ias logo com a sua rapidez e a sua força.
Não havia animal no bosque, que ele perseguisse,
Que dele conseguisse fugir: e de faro era também excelente.
Mas está agora nesta desgraça: o dono morreu longe,
e as mulheres indiferentes não lhe dão quaisquer cuidados.
Pois os servos, quando os amos não lhes dão ordens,
não querem fazer o trabalho como deve ser:
Zeus que vê ao longe retira ao homem metade do seu valor
quando chega para ele o dia da sua escravização.»

Assim dizendo, entrou no palácio bem construído
e foi logo juntar-se na sala aos orgulhosos pretendentes.
Mas Argos foi tomado pelo negro destino da morte,
depois que viu Ulisses, ao fim de vinte anos.

Homero, Odisseia (XVII, 290-237)
[Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003, pp. 282-283]
Άργος, ο σκύλος του Οδυσσέα

6 comentários:

  1. Os meus filhos estudam na FLUL, em Estudos Europeus, têm cadeiras de Estudos Clássicos, já leram a Odisseia, a Iliada e outras obras clássicas, são das cadeiras que mais apreciam. Agora brincam comigo e questinam o facto de eu ainda não ter lido essas obras. Já lhe garanti que o farei, só não sei quando...

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  2. Um cão que bem provou que é o melhor amigo do homem, reconhecendo-o qualquer que seja a sua condição, ao contrário dos humanos...

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  3. Uma leitura particularmente facilitada agora em português com as traduções exemplares de Frederico Lourenço...

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  4. Maria B Fernandes: Ulisses partiu e deixou o Argos ao abandono e assim morreu abandonado. Não conhecia a história. Se um dia voltar a ter um cão, vou chama-lo de Argos.

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  5. No 2° ciclo lemos a adaptação de Maria Alberta Menéres e os alunos adoram!

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  6. Maria da Conceição Andrade5 de abril de 2017 às 18:41

    Boas memórias dos tempos em que explorámos juntos a Ilíada e a Odisseia... e ainda outras obras e autores. Saramago também homenageou, justamente, os cães.

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