RHYTONPintor de Brygos, «Cabeça de cão» (séc. V AEC)
[Musée Jérôme Carcopino - Aléria (Haute-Corse - France)]
|
Reconhecimento & Fidelidade
Assim falaram entre si, dizendo estas coisas.
E um cão, que ali jazia, arrebitou as orelhas.
Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio
criara, mas nunca dele tirou proveito, pois antes disso partiu
para a sagrada Ílion. Em dias passados, os mancebos tinham levado
o cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres.
Mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente:
jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas,
até que os servos de Ulisses o levassem como estrume para o campo.
Aí jazia o cão Argos, coberto de carraças dos cães.
Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto,
começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas;
só que já não tinha força para se aproximar do dono.
Então Ulisses olhou para o lado e limpou uma lágrima.
Escondendo-a discretamente de Eumeu, assim lhe disse:
«Eumeu, que coisa estranha que este cão esteja aqui no esterco.
Pois é um lindo cão, embora eu não consiga perceber ao certo
se tem rapidez que condiga com o seu belo aspeto,
ou se será apenas um daqueles cães que aparecem às mesas,
que os príncipes alimentam somente pela sua figura.»
Foi então, ó porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta:
«É na verdade o cão de um homem que morreu.
Se ele tivesse o aspeto e as capacidades que tinha
quando o deixou Ulisses, ao partir para Troia,
admirar-te-ias logo com a sua rapidez e a sua força.
Não havia animal no bosque, que ele perseguisse,
Que dele conseguisse fugir: e de faro era também excelente.
Mas está agora nesta desgraça: o dono morreu longe,
Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio
criara, mas nunca dele tirou proveito, pois antes disso partiu
para a sagrada Ílion. Em dias passados, os mancebos tinham levado
o cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres.
Mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente:
jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas,
até que os servos de Ulisses o levassem como estrume para o campo.
Aí jazia o cão Argos, coberto de carraças dos cães.
Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto,
começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas;
só que já não tinha força para se aproximar do dono.
Então Ulisses olhou para o lado e limpou uma lágrima.
Escondendo-a discretamente de Eumeu, assim lhe disse:
«Eumeu, que coisa estranha que este cão esteja aqui no esterco.
Pois é um lindo cão, embora eu não consiga perceber ao certo
se tem rapidez que condiga com o seu belo aspeto,
ou se será apenas um daqueles cães que aparecem às mesas,
que os príncipes alimentam somente pela sua figura.»
Foi então, ó porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta:
«É na verdade o cão de um homem que morreu.
Se ele tivesse o aspeto e as capacidades que tinha
quando o deixou Ulisses, ao partir para Troia,
admirar-te-ias logo com a sua rapidez e a sua força.
Não havia animal no bosque, que ele perseguisse,
Que dele conseguisse fugir: e de faro era também excelente.
Mas está agora nesta desgraça: o dono morreu longe,
e as mulheres indiferentes não lhe dão quaisquer cuidados.
Pois os servos, quando os amos não lhes dão ordens,
não querem fazer o trabalho como deve ser:
Zeus que vê ao longe retira ao homem metade do seu valor
quando chega para ele o dia da sua escravização.»
Assim dizendo, entrou no palácio bem construído
e foi logo juntar-se na sala aos orgulhosos pretendentes.
Mas Argos foi tomado pelo negro destino da morte,
depois que viu Ulisses, ao fim de vinte anos.
Pois os servos, quando os amos não lhes dão ordens,
não querem fazer o trabalho como deve ser:
Zeus que vê ao longe retira ao homem metade do seu valor
quando chega para ele o dia da sua escravização.»
Assim dizendo, entrou no palácio bem construído
e foi logo juntar-se na sala aos orgulhosos pretendentes.
Mas Argos foi tomado pelo negro destino da morte,
depois que viu Ulisses, ao fim de vinte anos.
Homero, Odisseia (XVII, 290-237)
[Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2003, pp. 282-283]
Os meus filhos estudam na FLUL, em Estudos Europeus, têm cadeiras de Estudos Clássicos, já leram a Odisseia, a Iliada e outras obras clássicas, são das cadeiras que mais apreciam. Agora brincam comigo e questinam o facto de eu ainda não ter lido essas obras. Já lhe garanti que o farei, só não sei quando...
ResponderEliminarUm cão que bem provou que é o melhor amigo do homem, reconhecendo-o qualquer que seja a sua condição, ao contrário dos humanos...
ResponderEliminarUma leitura particularmente facilitada agora em português com as traduções exemplares de Frederico Lourenço...
ResponderEliminarMaria B Fernandes: Ulisses partiu e deixou o Argos ao abandono e assim morreu abandonado. Não conhecia a história. Se um dia voltar a ter um cão, vou chama-lo de Argos.
ResponderEliminarNo 2° ciclo lemos a adaptação de Maria Alberta Menéres e os alunos adoram!
ResponderEliminarBoas memórias dos tempos em que explorámos juntos a Ilíada e a Odisseia... e ainda outras obras e autores. Saramago também homenageou, justamente, os cães.
ResponderEliminar