21 de agosto de 2017

Amin Maalouf, o périplo de Baldassare em busca do centésimo nome de Deus

« Dieu a-t-il un centième nom, caché, qui viendrait s'ajouter aux quatre-vingt-dix-neuf que nous connaissons ? S'il en a un, quel est-il ? Est-ce un nom hébreu ? un nom syriaque ? un nom arabe ? Comment le reconnaître si on le voyait dans un livre ou si on l’entendait ? Qui, par le passé, l’a connu ? Et quels pouvoirs ce nom confère-t-il à ceux qui le détiennent ? »
Amin Maalouf, Le périple de Baldassare (2000)
Quando os livros falam de livros, o prazer da leitura duplica, triplica, quadruplica ou eleva-se à enésima potência, consoante o número de títulos referidos, citados ou comentados. Amin Maalouf faz parte desse escol de criadores de heróis da imaginação, em que o universo da palavra escrita em páginas de papel preenche a malha gráfica de histórias contadas com histórias dentro, também elas por contar ou recontar, tantas vezes quantas o olhar ávido do leitor assim o reclamar. As peripécias andarilhas de percurso relatadas em O périplo de Baldassare (2000), Prix Jacques Audiberti-Ville d’Antibes, no ano da sua publicação, não fogem a esse desenho diegético de fino traço, onde os momentos de proveito e deleite se cruzam em cada etapa da viagem, para dar corpo à fábula e sentido ao discurso. 

Baldassare Embriaco, genovês do Oriente e negociante de curiosidades, confidencia às laudas dum diário pessoal repartido por quatro cadernos as razões que o levaram a encetar a recuperação dum livro lendário de Abou-Maher al-Mazandarani, A revelação do nome escondido, mais conhecido pela designação de O centésimo nome, aquele que daria a conhecer aos eleitos o verdadeiro nome de Deus, para juntar aos noventa e nove epítetos restantes de Al-ilah (Alá)registados no Alcorão. Fá-lo também na convicção de que assim garantiria a salvação dum mundo condenado inexoravelmente ao desaparecimento total. Redige-o em italiano codificado com carateres árabes, enquanto viaja pelos três continentes do Velho Mundo, como se se tratasse dum verdadeiro roteiro de bordo. Inicia o relato quatro meses antes do bíblico Ano da Besta e conclui-o no primeiro dia de 1667, passado o perigo prognosticado no décimo terceiro capítulo do Apocalipse de São João, quando o número cabalístico de 666 se transforma no de 1666. O final dos tempos estava previsto no derradeiro livro dos livros. As superstições da época assim o exigiam.

O ponto de partida do périplo anunciado no título do romance situa-se no medieval Senhorio de Gibelet (1104-1302), fundado por um familiar do protagonista-relator no âmbito das Cruzadas Cristãs à Terra Santa. Prossegue por terra e mar, em etapas de duração variável pela Síria e Cilícia, pelos montes de Taurus e planalto da Anatólia, estreito dos Dardanelos e ilha de Quios, navega nas águas do Egeu e do Mediterrâneo, Atlântico e Mancha, visita uma primeira vez Génova e dirige-se a Londres, com passagem por Minorca, Tânger, Lisboa e Amesterdão, para regressar de modo definitivo a Génova, de onde o seu avoengo Guilherme Embriaco partira 563 anos antes. O verdadeiro périplo de Baldassare, o histórico e o ficcionado, acabava de terminar. Pelo meio ficou um livro oferecido, vendido, procurado, perseguido, descoberto, perdido, recuperado. Aberto para a leitura, fechado para o entendimento. É que apenas os dignos teriam acesso à chave da sua decifração. Só a pureza dum novo Galaaz permitiria pronunciar o sagrado nome da divindade suprema dos três monoteísmos.

Lidos os livros, o real e o imaginado, o diarista apercebe-se das suas limitações de pecador para conhecer os desígnios do Senhor e desiste de o fazer. Apercebe-se, também, que as calamidades previstas para esse ano aziago se tinham limitado, grosso modo, ao Grande Incêndio de Londres, que lavrou de 2 a 5 de setembro de 1666. Parte da cidade de Carlos II Stuart e Catarina de Bragança foi engolida por um inferno de chamas, mas o resto do mundo ficou incólume à catástrofe. Sobreviveu. As profecias da extinção apocalíptica dos tempos ficaram adiadas sine die, e, com elas, as tentativas de renovação de fé dos arautos iluminados das três religiões do Livro: os Impacientes muçulmanos do Imã Escondido, o advento do Messias judaico Sabbatai Zevi, as histórias do futuro do jesuíta português António Vieira. As histórias com História dentro contadas à maneira de Amin Maalouf chegam ao fim quando já não há mais nada a registar nos cadernos de Baldassare Endriaco. O balanço da peregrinação encontrara o seu ponto final. O cronista por ter encontrado a paz, a harmonia e o amor há muito almejados. O romancista por ter outras histórias a contar noutros livros. Abramo-los nós leitores e vivamos as suas escritas com todo prazer garantido que as obras do autor nos habituaram a usufruir ou sigamos as sugestões de leitura aí registadas. Fico-me como os versos de Abou-l-Ala, o poeta cego de Maarra, contemporâneo das Cruzadas e crítico acérrimo de todas as verdades impostas pela força na Torah, no Alcorão e nos Envangelhos. Uma boa pesquisa a encetar neste final de férias grandes de verão em que tanto se tem falado de cruzamento de culturas, diálogo de civilizações e tolerância de crenças.      

5 comentários:

  1. "... il n'y a pas d'autre iman que la raison..." Tem muita razão o teu poeta cego. Com esta ficção, Amin Malouf lança mais luz ao devir humano que todas as profecias apocalípticas. Obrigada por esta excelente partilha, Prof!

    ResponderEliminar
  2. Adoro o Amin Maalouf! Acho que já tudo o que publicou. Estou a reler o Rochedo de Tanios. É um conto fantástico! Recomendo.

    ResponderEliminar
  3. Não li, mas irei. Vejo que há três títulos em sueco editados na década de 90.

    ResponderEliminar
  4. Excelente, Professor! Obrigada pela sugestão e pela partilha!

    ResponderEliminar
  5. Carlos Marques Simões23 de agosto de 2017 às 15:59

    Olá Artur....Excelente ideia recomendares a leitura do Amin Maalouf. Além de "O Leão Africano" outro livro que achei notável é "Samarcanda".

    ResponderEliminar