25 de outubro de 2017

A Casa de Avis e os primeiros padroeiros de Lisboa

SÃO CRISPIM E SÃO CRISPINIANO

[Painéis centrais dos Painéis de São Vicente]
Já então eu publicara na revista O mundo português a descoberta de que, ao contrário do que se pensava, existiam sim dois santos, que tinham as condições requeridas para poderem ser os santos dos Painéis. | Eram dois e estavam ligados à história da conquista de Lisboa aos mouros [...] (A) hipótese de se tratar dos santos Crispim e Crispiniano, irmãos mártires gémeos e primeiros padroeiros de Lisboa, por ter tido na véspera do seu dia que a cidade fora conquistada aos mouros, e no seu dia, 25 de outubro, que D. Afonso I entrara na cidade.
Theresa Schedel de Castello Branco
Os painéis de S. Vicente de Fora. As chaves do mistério
Lisboa: Quetzal, 1994, 118-119
Muito se tem dito sobre as sessenta personalidades representadas no Políptico das Janelas Verdes (c. 1470), um conjunto de seis tábuas pré-renascentistas, atribuídas a Nuno Gonçalves (séc. xv) e geralmente referenciado por Painéis de São Vicente. A oscilação na titulação da pintura quatrocentista advém das dúvidas persistentes que a sua interpretação tem suscitado desde a sua descoberta ocasional no Mosteiro de São Vicente de Fora e do seu depósito no Museu Nacional de Arte Antiga ou das Janelas Verdes.

Há quem queira, todavia, associar a obra a São Vicente de Huesca (séc. iv), martirizado em Valência, no tempo do imperador romano Diocleciano. O que nunca ficou esclarecido pelos defensores desta tese é a razão da dupla figuração nos painéis centrais. As hipóteses alternativas pecam pela mesma dificuldade e acrescentam outras. Poderemos questionar-nos até que ponto se torna credível optar por Santo Estêvão, Santa Catarina, Santiago Menor, Infante Santo D. Fernando ou mesmo por um arauto da Era do Espírito Santo.

O número global de individualidades arroladas é difícil de contar, centrando-se sobretudo nos diversos membros da Casa de Avis, com um especial enfoque no misterioso Senhor do Chapeirão, a quem se continua a chamar insistentemente de Infante D. Henrique. Os casais reais constituídos por D. Duarte e D. Leonor de Aragão ou por D. Afonso V e Isabel de Coimbra, bem como o Príncipe Perfeito D. João II e a Princesa Santa D. Joana, concorrem entre si para ocupar um espaço privilegiado no retrato áulico de grupo.

A aceitação do duplo santo no retábulo pode justificar-se por ter sido achado na primeira igreja edificada fora da cerca moura. D. Afonso Henriques até converteu São Vicente em padroeiro de Lisboa em 1173, quando trasladou as suas relíquias para a futura capital do reino. Acontece que em 1147 já oferecera o padroado da cidade a São Crispim e São Crispiniano, por ter sido no seu dia que entrara em Lixbuna. Dois gémeos idênticos, aí está uma boa solução para o enigma fulcral da obra-prima da pintura nacional.        

18 de outubro de 2017

Surrealismos duma admiração interrogativa

DISCUSSÃO

– Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos e virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.
Desculpei mas fiquei ofendido. Que a democracia era aquilo mesmo, e ainda com conversa fiada como brinde, isso sabia eu. Que mo viessem dizer, era outra coisa. Fiquei ainda mais ofendido, até porque não gosto de erros cósmicos. Acho um snobismo.
– Eu sou democrático – rugi entre dentes, como resposta. – Tenho amigos no exílio, todos democráticos. Foram para lá por serem democráticos. É um sacrifício que poucos fazem, ir para o exílio e ser professor universitário exilado e democrático. Eras capaz de fazer isso?
– Não sou democrático.
Não havia resposta a dar. Nenhuma. Ele não era democrático, não sabia de democracia.
Eu sim, sou democrático, até quis ir à América, que me afirmaram que lá é que é a democracia. Recusaram-me o visto no passaporte, disseram que eu era comunista! Viram isto!?
Mário-Henrique Leiria, Contos do Gin-Tonic (1973)

12 de outubro de 2017

Ana Margarida de Carvalho: o céu dos pardais é a barriga dos gatos em cujos olhos se não pode morar

«Não são os deuses que dormem, nós é que os sonhamos...»
Ana Margarida de Carvalho, Não se pode morar nos olhos de um gato (2016)
Filha de peixe sabe nadar. As barbatanas da aprendiza a sulcarem as águas da escrita a milhas náuticas do pai. Habituei-me às braçadas vigorosas do Mário e sinto dificuldade de seguir as da Ana Margarida. O humor sarcástico e bem-disposto do Carvalho-pai a sobrepor-se ao horror demolidor e mal-encarado da Carvalho-filha. Registos diferentes com os quais a literatura se faz. Ou se gosta ou não se gosta. Desconheço meios termos possíveis. Iniciei-me estas férias de verão com um muito proverbial Não se pode morar nos olhos de um gato (2016). Não me deixou insensível. Cumpriu de modo eficiente e convincente a sua missão de semear tumultos, de alimentar alvoroços, de suscitar emoções.

A síntese da contracapa quase nos dispensa a leitura do romance. Quase que lhe adivinhamos os pormenores que virão ao virar das trezentas e cinquenta páginas que o compõem. Pálida ideia do que a realidade nos oferecerá. Em contrapartida, as badanas de capa pouco adiantam ao texto que acompanham. Limitam-se a dar visibilidade aos pareceres críticos lavrados na devida altura e por obrigação de ofício, pela rede fixa de mediadores de opinião às qualidades já premiadas da obra de estreia, a condicionarem os juízos de valor ainda por tecer daquela que mal acabei de abrir e tenho entre mãos. Marketing editorial a que já estamos habituados. 

O início da fábula é precedido por duas advertências ao leitor, que se podem resumir ao dito popular: os gatos não são para aqui chamados. O título do livro, ao que nos é dado observar, foi retirado duma frase/verso de Alexandre O'Neill, Poema do desamor. Primeiro exemplo duma intertextualidade explícita a que se seguirão muitos outros casos de referências literárias implícitas. Extratos das cantigas trovadorescas de escárnio e maldizer e do vernáculo vicentino da Trilogia das Barcas são fáceis de identificar. Provérbios, lengalengas, orações, pragas, esconjuros. A estrutura discursiva de base centra-se, todavia, nos relatos compilados por Bernardo Gomes de Brito na História trágico-marítima (1735-1736). As relações e notícias de naufrágios, de sucessos infelizes, e acontecidos aos navegadores portugueses nos mares das Índias e Américas dos séculos xvi e xvii são trasladados para os finais do xix com ato de presença nas costas brasileiras. Refere ainda a ficha técnica que a autora escreve de acordo com a antiga ortografia. Bem podia tê-lo feito ao modo do oitocentos que a inspirou, para dar um cunho mais verosímil ao discurso. Ficou-se pela fixação de preceitos e regras intermédios, numa tentativa vã de marcar a diferença, numa época como a nossa em que predomina a indiferença pura e dura.

Passados os prolegómenos e entrados no âmago dos eventos repor-tados, topamos com um pungente rosário de contas por benzer ou por contar, numa estrutura barroca tecida segundo os preceitos matriciais judaico-cristãos do sofrimento infligido e merecido. Novela de novelas cortesãs, enfiada de contos exemplares de percursos existenciais pouco edificantes dos sobreviventes da tempestade, calmaria, incêndio, rebelião e afundamento do navio clandestino de escravos. Alcançam uma praia isolada do mundo por altas falésias e uma extensão de areia que as marés farão submergir intermitentemente ao sabor das marés. Fome, sede, doença, febre, morte a pontuarem os dias e as noites. Cativeiro partilhado a contragosto por todos os companheiros de infortúnio, à semelhança dos danados do Huis Clos de Jean-Paul Sartre, condenados ao inferno dos outros. Todos são obrigados a conviver sem possibilidade de fuga. Uma mãe e uma filha, um capataz, um escravo, um criado, um padre, um menino e uma santa de pau carunchosa a iniciar a procissão de penitentes. Cada um deles a testemunhar memórias fragmentárias, recordações duma infância distante, lembranças dum tempo que já não é e à espera dum tempo que talvez seja.

Lidas as confissões, exames de consciência e contrições assumidas, os resistentes aos caprichos do destino são retratados de modo magistral pela entidade ficcional que lhes deu vida na mancha gráfica dum livro. Relação de relações composta com um virtuosismo verbal alucinante, magnífica na capacidade de dar vida à arte da escrita. Violenta como as águas tumultuosas do mar ou agreste como os ventos indomáveis das tempestades. Flashes da condição humana. Cruel, impiedosa, implacável, insensível, inelutável. Sonho dos deuses ou castigo dos homens de sonharem os deuses. Algo será. Entretanto, antecipemos a falência geral dos órgãos e sintamos os cheiro das rosas.

5 de outubro de 2017

Da coisa pública ou de um só

 CÂNDIDO DA SILVA (?) - LITOGRAFIA ALUSIVA À PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA (1910)

  República vs. Monarquia  


Faz 107 anos que a Monarquia multissecular lusitana (868-1910) de condes, duques, príncipes e reis foi substituída pela República dos presidentes. O princípio hereditário dos filhos-de-algo caiu por terra e o eletivo dos filhos-do-vulgo começou a ser testado desde então. A chefia do país perdeu o caráter vitalício feito à medida de um só para se subordinar à vontade de todos. O 5 de Outubro que hoje se celebra num feriado restaurado não é um número redondo nem bicudo. Representa o livre-arbítrio de escolher quem deve representar superiormente a res publica ou coisa  pública. 

Face aos recentes acontecimentos da Catalunha, pergunto-me se o divórcio conflituoso que separou as Coroas de Portugal e Castela em 1640 se teria resolvido com uma separação amistosa, caso Lisboa tivesse obedecido cegamente a Madrid. Se na altura tivéssemos seguido as orientações legalistas do Conde-Duque de Olivares, é bem certo que ainda hoje seríamos uma Monarquia subordinada aos Borbones hispânicos e aos ditames de Mariano Rajoy. Nem os Braganças lusitanos teriam ascendido ao poder no séc. xvii, nem sido substituídos pela República no séc. xx.

. Hola República. . Hola país nou . Hola EuropaAssim rezavam as bandeiras e os cartazes das arruadas de Barcelona. Uma nova República terá nascido na Catalunha. Um novo país terá ressurgido na Hispânia. Um novo estado terá emergido na Europa. A vontade já está estampada em forma de letra escrita e de palavra gritada em liberdade ao mundo. Hola llibertat. . Hola món. No dia em que se celebra o advento da coisa pública portuguesa contra a de um só, saúde-se o desejo referendado pela coisa pública catalã de mudar de paradigma. Que se diga: Adéu Borbó i hola República...