6 de novembro de 2017

Bruce Chatwin: a saga esclavagista do vice-rei de Ajudá

«Dom Francisco (…) came from San Salvador da Bahia in 1812 and, over thirty years, was the “best friend” of the King of Dahomey, keeping him supplied with rum, tobacco, finery and Long Dane guns which were made not in Denmark but in Birmingham. | In return of these favours, he enjoyed the title of Viceroy of Ouidah, a monopoly over the sale of slaves.»
Bruce Chatwin, The Viceroy of Ouidah (1980)
São admiráveis os caminhos sinuosos como certos livros nos chegam às mãos e o processo de leitura que lhe anda associado. Uma sugestão casual dum amigo, um título apelativo ao ouvido, um exemplar algures à nossa espera. O acaso trouxe-me ao convívio de Bruce Chatwin, crítico de arte e de arquitetura, jornalista e escritor de viagens. Deu-se-me a conhecer através d’O vice-rei de Ajudá (1980), romance que encontrei meio escondido numa estante de obras esquecidas ou tidas como fora de prazo. Olhou para mim com determinação e ordenou-me, perentório: Lê-me! Não me apeteceu obedecer-lhe de imediato. Mudei-o para o monte de calhamaços destinados a serem visitados durante as férias. O momento chegou este verão. Peguei-lhe um pouco a contragosto, com a ideia fisgada de lhe prestar alguma atenção durante os longos momentos de espera nas estações de caminho-de-ferro e dos aeroportos visitados. A solução foi proveitosa. Entre o ponto de partida e o ponto de chegada, o passeio pelo interior do texto cumpriu satisfatoriamente o trânsito completo pela centena e meia de páginas que lhe dão corpo e revelam os segredos. As impressões de percurso seguem sem mais delongas. 

A ficção está ancorada no comércio atlântico de escravos, perpetrado ao longo de quatro séculos, entre as costas da Mina e da Guiné e as costas do Novo Mundo, descoberto, conquistado e colonizado pelos povos ibéricos e por todos aqueles que os imitaram no Velho Mundo. Crime hediondo de genocídio cometido pelos esclavagistas europeus, em íntima colaboração com os esclavagistas africanos e em perfeita sintonia com os esclavagistas americanos. Nesta matéria de opressão do homem pelo homem não há inocentes. Todos são culpados. Sem exceção. Problema da humanidade em explorar a sua própria espécie. A cor da pele é irrelevante. Os procedimentos são idênticos. O cronista inglês dos tempos modernos inspirou-se nos factos verdadeiros das histórias acontecidas e imaginou os feitos verídicos de histórias possíveis. Francisco Félix de Souza, personalidade real de carne-e-osso, sai de cena e Francisco Manoel da Silva, personagem fictícia de papel-e-tinta, põe a máscara de vice-rei de Ajudá e dá início aos diversos atos do drama. No teatro de operações, a fortaleza seiscentista portuguesa, construída no Reino de Daomé, sob o patrocínio de São João Batista, assistir-se-á ao advento, consolidação e queda duma dinastia de negreiros brasileiros. 

As aventuras peregrinas do fundador duma família espalhada pelo mundo, escritas a ferro e fogo com muito sangue à mistura, iniciam-se em terras de Santa Cruz, no Sertão ganadeiro. O traçado pícaro é visível. Órfão de pai cangaceiro com um ano de idade, vê a mãe ligar-se a um índio mestiço e perecer vitimada pela seca. É protegido até aos treze por um padre português exilado do reino por comportamento pouco canónico. Vagueia pela catinga nordestina. Faz-se aprendiz de açougueiro, almocreve, boiadeiro e garimpeiro. Estaciona em aldeias indígenas e comboia ciganos que traficavam escravos. Casa-se. Engravida a mulher. Abandona-a e ao filho recém-nascido. Regressa às deambulações solitárias. Experimenta alguns momentos fugidios de arrependimento e de refúgio nas promessas da religião. Entrega-se, ato contínuo, à bebida nas tabernas, ao riso, ao jogo das cartas. Instala-se na Baía. Em 1812, com 27 anos, abandona a Cidade de Todos os Santos, atravessa o grande Mar Oceano, desembarca em Ajudá, numa sombria manhã de maio. O resto da história encontra-se sintetizado na frase que serve de epígrafe a este relato de leitura. Fico-me por aqui. A paráfrase não deve nunca substituir o fluir diegético do original

O romance desenhado em forma de saga assenta arraiais na escravatura negra. Aquela que as diligências interesseiras da Inglaterra aboliriam definitivamente em 1834. Aquela que as pressões tardias das potências ocidentais levariam Portugal a seguir-lhe as pisadas em 1869. O Brasil fá-lo pela Lei Áurea de 1888. O ciclo de vida vivida do patriarca negociante de vidas por viver chega ao fim e o império por si erigido esboroa-se como um castelo de areia ressequido pelo sol. A distinção entre senhores e servos não partiu com ele. Outros tipos de escravatura ficaram. Alguns chamam-lhe branca, que é o conjunto de todas as cores. A relação dessas novas formas de servidão está ainda por traçar.

NOTA
Trazido do Pátio de Letras para estas Histórias d' Arthur d' Algarbe, agora que a descriminação racial e as práticas de escravatura moderna voltaram a assombrar-nos nestes nossos dias tumultuosos de início de milénio. 

3 comentários:

  1. Bruce Chatwin ganhou visibilidade com o aclamadíssimo Na Patagónia, só mais tarde publica O Vice-Rei de Ajudá, é hoje considerado um dos mais proeminentes escritor de viagens. Li os dois títulos há mais de 25 anos...
    " Tem cuidado e acautela-te
    Com o Golfo de Benim.
    Por cada um que sai
    Há quarenta que lá ficam."
    Provébio negreiro

    ResponderEliminar
  2. Do tipo de romance histórico que me deixa com os canelos em pé, apesar de já saber que "o homem é o lobo do homem"... Belo texto, Prof.!

    ResponderEliminar
  3. Despertou-me muito interesse. Obrigada.

    ResponderEliminar