«…hoje é um dia muito estranho para mim, estou a sonhar mas parece-me ser realidade e tenho de encontrar umas pessoas que só existem na minha lembrança.»Antonio Tabucchi, Requiem – uma alucinação (1991)
Comprei o Requiem – uma alucinação (1991) de Antonio Tabucchi mal foi publicado, com o firme propósito de o ler mal chegasse a casa. A circunstância de ter sido escrito diretamente em português por um italiano abrira-me ato contínuo o apetite de entrar no seu interior e de desvendar os seus mistérios mais secretos, aqueles que todas as obras de arte carregam consigo, à espera que os visitantes mais audazes tenham tanta habilidade para os deslindar quanta os seus arquitetos tiveram para os idear. Só cumpri este intento passados 21 anos. A marcha imparável do tempo e os caprichos imponderáveis do dia a dia impediram-me de cumprir esse desejo de imediato. A morte do autor anunciada nos mass media recordou-me que já estava em dívida para com ele há uma eternidade. O romance, composto em forma de missa de defuntos e ilustrado com um fragmento d’As tentações de Santo Antão de Hyeronimus Bosch, saiu enfim da prateleira dos livros esquecidos e das leituras adiadas e começou a desfiar o seu rosário de preces encomendadas às almas dos entes convocados pela fábula, em nove etapas, tantas quantas as partes eclesiásticas consagradas pelo género litúrgico que o enforma e inspira.
A obra até seria difícil de integrar satisfatoriamente numa categoria literária precisa e regularizada pelos cânones tradicionais, se não se desse o caso providencial de a instância narrativa, prevendo as dificuldades sentidas pelos leitores mais inexperientes nestas lides das letras, a ter colocado na órbita imediata do insólito, na fronteira dicotómica do real/imaginário, espaço psíquico em que o desvario caótico da alucinação e a fantasia episódica do sonho tomam conta do discurso e o transformam numa sonata de palavras pensadas com cadência musical e entoadas com precisão poética. A plausibilidade factual do relato fica garantida, dado que dentro e fora das páginas que o abrigam nada de sobrenatural aconteceu, apesar da sensação de estranheza com que ficamos ao percorrer a romaria do protagonista pelos trilhos das lembranças perdidas. Tudo se explica através da capacidade inata que todos nós temos de forjar mundos alternativos do faz-de-conta. Assim a saibamos alimentar e acarinhar.
A ação decorre num escaldante domingo de verão, o último do mês de julho dum qualquer ano do final da década de 80, quando Mário Soares presidia de maneira peculiar aos destinos da república. O Eu narrador e alter ego do autor achava-se numa quinta de Azeitão a ler à sombra duma amoreira O livro do desassossego de Bernardo Soares, quando é atacado pelos fantasmas da memória e se vê levado, por artes de berliques e berloques, para o centro de Lisboa. A tranquilidade bucólica é substituída pelo bulício urbano e a aventura dos diálogos da vida e da morte entra em palco, para as necessárias permutas de tempo e inadiáveis ajustes de contas com a história. Segue-se uma acabada galeria de tipos disposta à boa maneira vicentina da trilogia das barcas. A ribalta dos encontros fortuitos e dos planeados desloca-se, ao sabor da maré, para os cenários do cemitério dos Prazeres, de vários restaurantes citadinos, uma pensão de bairro, o museu das Janelas Verdes e um comboio da linha de Cascais, espaçados pelas calçadas, ruas, praças, largos e avenidas que os estreitam entre si.
A última etapa da peregrinação onírica dá-se em Alcântara com Fernando Pessoa. Os ecos d’O ano da Morte de Ricardo Reis (1984) de José Saramago são audíveis desde o início deste requiem novelesco. Só muda o relevo dado aos heterónimos evocados e a frequência dos encontros relatados. A conversa toma a forma dum simpósio e é travada em português e inglês, os dois idiomas que acompanharam o poeta ao longo da sua existência. Os assuntos abordados são medianamente banais e centram-se nos desassossegos verdadeiros e fingidos vividos pelos dois no ato da criação literária. Intersecionismos, futurismos e saudosismos são aflorados mas esbarram com as vanguardas pós-modernas desconhecidas pelo inventor da primeira modernidade. O jantar chega ao fim e com ele a matéria que alimentara até então o relato. Cada um dos convivas parte para o seu mundo sem direito a despedidas. O sonho-alucinação chegara ao fim. Lisboa fica para trás e Azeitão volta a perfilar-se no horizonte do sonhador-alucinado. Entre um espaço e outro, fica a homenagem de Tabucchi à cultura portuguesa e à língua que lhe dá voz e sentido. Prestemos-lhe nós também o preito que merece e mergulhemos nas águas profundas dos seus escritos, na dádiva dos silêncios partilhados e dos afetos confessados.
NOTA
Publiquei este texto no Pátio de Letras faz hoje há precisamente 6 anos. Trago-o agora para este espaço com algumas pequenas alterações de pormenor. Faço-o como forma pessoal de me associar à homenagem que em boa hora a Fundação Calouste Gulbenkian vai dedicar a Antonio Tabucchi, a fim de assinalar a morte do homem da cultura italiana que um dia se apaixonou pela cultura portuguesa e nela passou também a viver.
Publiquei este texto no Pátio de Letras faz hoje há precisamente 6 anos. Trago-o agora para este espaço com algumas pequenas alterações de pormenor. Faço-o como forma pessoal de me associar à homenagem que em boa hora a Fundação Calouste Gulbenkian vai dedicar a Antonio Tabucchi, a fim de assinalar a morte do homem da cultura italiana que um dia se apaixonou pela cultura portuguesa e nela passou também a viver.
Foi bom reler este magnífico texto, Prof! Infelizmente, ainda não li mais nada deste escritor italiano que escolheu residir em Portugal e inspirar-se em Pessoa, nem mesmo este Requiem tão apelativo...
ResponderEliminarDo autor li apenas Noturno Indiano, há muito, muito tempo, cerca de 30 anos! Confesso que pouco recordo do que li, talvez devesse regressar...
ResponderEliminarDesafiante o seu texto e feliz a iniciativa da Fundação.