23 de abril de 2018

Markus Zusak: a rapariga que roubava livros para dar vida às palavras que ali jaziam

«She saw it but didn’t realize until later, when all the stories came together. She didn’t see him watching as he played, having no idea that Hans Hubermann’s accordion was a story. In the times ahead, that story would arrive at 33 Himmel Street in the early hours of morning, wearing ruffled shoulders and a shivering jacket. It would carry a suitcase, a book, and two questions. A story. Story after story. Story within story.»
Markus Zusak, The Book Thief (2005)
Descobri as histórias dentro da história reveladas no livro que a Morte encontrou perdido num carro de lixo na tela gigante dum cinema. Janela aberta para os percursos de vida traçados na meia dúzia de anos em que a Segunda Guerra Mundial andou por à solta a semear destruição pelos quatro cantos da terra. A ação decorre em Molching, um subúrbio de Munique, com atuações centradas na rua Himmel, topónimo que o autor se apressa a traduzir por Céu. História após história, vamos tendo notícia dos dramas que o III Reich produziu dentro e fora das fronteiras dum império que pretendia milenar. Os atores são germânicos, seres humanos que aprenderam a odiar o nazismo, ainda que a filiação no partido da suástica fosse a única forma disponível de sobreviver à catástrofe. Ironia trágica a que poucos escaparam. As histórias que dão corpo à história foram contadas em forma de romance por Markus Zusak, nA rapariga que roubava livros (2005), bestseller global delineado a partir das memórias que os pais do jovem escritor australiano, um austríaco e uma alemã, guardaram desses tempos agitados que assolaram os seus países natais a ferro e fogo e os reduziram inexoravelmente a cinzas. 

O fascínio da escrita chegou-me assim que regressei a casa. Resgatei um exemplar do ostracismo a que uma capa pouco apelativa o condenara. Uma dança macabra executada por duas figuras femininas, riscada entre frases publicitárias, tirou-me o apetite de imergir no seu interior e de verificar a licitude das laudas tecidas pela crítica jornalística anglo-americana de grande tiragem, para adjetivar as qualidades exigidas por uma obra-prima. Brilhante, absorvente, marcante, soberba, extraordinária, clássica. Como sou pouco dado aos elogios duvidosos dos editores, limito-me a confirmar a excelência da fábula. O encontro a posteriori com as palavras feitas para serem lidas revelou-me a parte oculta do iceberg, aquela que a economia discursiva da película afastara do grande ecrã. A tessitura romanesca permite-nos identificar a verdadeira dimensão duma calamidade planetária, reunida num conjunto restrito de testemunhos pontuais dos factos relatados. Dão pelo nome de Liesel, Hans e Rosa. Referem-se à menina que roubava livros para dar vida às palavras que ali viviam encerradas e aos pais adotivos que a acolheram num momento em que os afetos andavam um pouco afastados da realidade quotidiana. Um pintor alemão que tocava acordeão e uma mulher com pulso de ferro que engomava para fora. Uma família nuclear rodeada doutras famílias nucleares. Um vislumbre de paz num horizonte de guerra. 

De entre os títulos restituídos pela heroína ao convívio dos leitores, encontra-se um dicionário de língua alemã. A mancha gráfica que corpo ao texto regista uma série de vocábulos que nos ajudam a entender a mensagem subliminar que atravessa o relato. Felicidade, perdão, medo, palavra, oportunidade, desgraça, silêncio, pesar. O discurso metalinguístico multiplica os termos arrolados por um número considerável de possibilidades alternativas. Em nenhum caso aparece explicitado o conceito de amizade. Este terá de ser encontrado nas relações pessoais que traçam os destinos cruzados das personagens. A da bibliotecária de livros furtados repartida pelo pugilista judeu, que os pais haviam acolhido secretamente na cave lá de casa, e pelo jovem ariano colega de escola e brincadeiras, que vivia paredes meias na casa ao lado da sua. O apego incondicional pelos labirintos da criação artística leva o primeiro a oferecer-lhe O homem debruçado e a dedicar-lhe A sacudidora de palavras: uma autobiografia contada com imagens legendadas e uma biografia alegórica ideada como uma coleção de pensamentos ilustrados. O segundo limita-se a acompanhá-la até à mansão do presidente da câmara, onde uma imensa sala forrada de livros lhe vai dando ânimo para enfrentar as incertezas do dia-a-dia e a inspirará para registar o seu percurso de vida. Fê-lo no livro preto que a ceifadora de vidas salvara dos escombros dum bombardeamento e adaptou depois para a posteridade com o título do livro que temos entre mãos. 

Lidos os livros que compõem a história da rapariga que roubava livros, apercebemo-nos de como a morte por vezes se deixa condoer pela sorte dos vivos, outorgando a alguns a roupagem própria dos heróis, aqueles que moram na memória dos sobreviventes por períodos de tempo mais ou menos longos. Na república das letras, as críticas passam e as obras ficam. A fama alcançada por Markus Zusak nas páginas dum livro e nos fotogramas dum filme só passará da esfera da efemeridade para a da perenidade se o público leitor assim o entender. Só assim os heróis da imaginação poderão aspirar à companhia das Musas que habitam as alturas do Parnaso. Assim dizem os Poetas, assim repetem os Homens. Uns e outros a darem jus ao seu ancestral anseio de infinito.

NOTA
Texto originalmente publicado no Pátio de Letras há cerca de quatro anos e trazido agora para este espaço de leituras e escritas, na data em que se comemora o Dia Mundial do Livro, por se tratar dum livro que fala de livros como poucos o conseguem fazer.  

2 comentários:

  1. A simples presença do «O homem debruçado» de «A sacudidora de palavras» no interior de «A rapariga que roubava livros» já seria suficiente para considerar Markus Zusak como um grande contador de histórias.

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