« ‒ E se me deixasses entrar?Ela estava a tratar-me por tu. Excesso de confiança. Lá por me ter deitado com alguém não me vejo obrigado a certas intimidades.‒ Nem sei que diga ‒ suspirou Noémia, já sentada no canapé às listas, suposto de família.‒ Ainda me sinto pouco à vontade no papel de viúvo. Nunca tinha experimentado ‒ respondi eu...»Mário de Carvalho, Burgueses somos nós todos ou ainda menos (2018)
Mário de Carvalho antecede os onze contos reunidos nos Burgueses somos todos nós ou ainda menos (2018) com um poema composto por Mário Cesariny, em cuja estrutura versificada repete oito vezes a ideia provocatória que «Burgueses somos nós todos». Insinua ainda numa segunda epígrafe, pedida agora de empréstimo a Álvaro de Brito Pestana, que «Casados têm barregãs | E casadas barregãos». Curiosa abertura lírica esta para modelar numa ficção prosificada. Para quem conhece o autor, a componente irónica deixa-se logo adivinhar nas três linhas bem preenchidas que constituem o título da coletânea, ótimo incentivo para começar de imediato a viagem pelo interior dos textos.
Os quatro relatos inaugurais são integralmente pautados pelo recurso a um «eu» enunciador. Vozes masculinas todas elas. De meia-idade, diríamos nós, para empregar um eufemismo piedosos quando nos referimos a seres cuja esperança de vida, se estivessem de facto na fase intermédia da sua existência, ultrapassaria no mínimo e sem dificuldade os cento e vinte ou mais anos. Um viúvo descobre postumamente as infidelidades da esposa através dum diário indiscreto que esta confiara a uma vizinha. Um professor participa com a mulher num jantar de amigos onde encontra duas das suas aventuras casuais. Um outro viúvo faz uma ronda pelas suas conquistas pretéritas devidamente anotadas num lista. Um velho viúvo visita um amigo enfermo a quem traíra com a falecida mulher.
As quatro histórias mediais mudam de registo focalizando-se num «ele» discursivo sem marcas claras de se tratar duma «ela». Muito pelo contrário. A presença dum grupo representativo da alta finança bancária lisboeta das avenidas novas substitui as mancebias anteriores. Depois num ambiente de enfermaria hospitalar as pequenas-grandes questiúnclas familiares de classe social alta são equacionadas. Segue-se um fragmento de vida-morte é revelado entre jazigos dum cemitério durante um funeral. Os engates de esquina e a meia haste protagonizados por um homem e uma mulher encerram a série central com um apontamento ocasional e de desfecho imprevisível.
Os testemunhos de primeira pessoa regressam nas duas narrativas seguintes a preceder o diálogo ininterrupto e exclusivo com que se encerra a compilação, convertendo os «eu» e os «tu» em presença direta ou indireta num desfilar de «eles» centrais com algumas «elas» laterais a servir de pano de fundo. Um moço de futuro promissor frustra os planos do pai adotivo. Um telefonema feito a meio dum jantar de empresa termina num duplo divórcio. Uma fatura exorbitante dum pai de família já entrado na idade desencadeia uma disputa acesa travada a três vozes pelos filhos.
Os fragmentos breves dum certo quotidiano urbano cabem todos num retábulo de palavras inscritas numa escassa centena de páginas. As relações triangulares simples, duplas e triplas pululam em cada canto. As burguesias e barreganias são rainhas soberanas. Os vícios, defeitos e ridículos dos nossos dias são relevados a cada passo. A sátira mordaz e o sarcasmo impiedoso tomam conta do discurso e a caricatura surge. O escárnio e o maldizer são reis absolutos. O já experienciado pretérito atualiza-se nas falas pensadas ou ditas dos heróis/anti-heróis pintados. Isoladas, dispersas, fugidias. Cenas co-nhecidas de todos nós, literatos que somos por nossas mãos. Ratos e gatos irmãos desde pequenos ou ainda menos.
Os quatro relatos inaugurais são integralmente pautados pelo recurso a um «eu» enunciador. Vozes masculinas todas elas. De meia-idade, diríamos nós, para empregar um eufemismo piedosos quando nos referimos a seres cuja esperança de vida, se estivessem de facto na fase intermédia da sua existência, ultrapassaria no mínimo e sem dificuldade os cento e vinte ou mais anos. Um viúvo descobre postumamente as infidelidades da esposa através dum diário indiscreto que esta confiara a uma vizinha. Um professor participa com a mulher num jantar de amigos onde encontra duas das suas aventuras casuais. Um outro viúvo faz uma ronda pelas suas conquistas pretéritas devidamente anotadas num lista. Um velho viúvo visita um amigo enfermo a quem traíra com a falecida mulher.
As quatro histórias mediais mudam de registo focalizando-se num «ele» discursivo sem marcas claras de se tratar duma «ela». Muito pelo contrário. A presença dum grupo representativo da alta finança bancária lisboeta das avenidas novas substitui as mancebias anteriores. Depois num ambiente de enfermaria hospitalar as pequenas-grandes questiúnclas familiares de classe social alta são equacionadas. Segue-se um fragmento de vida-morte é revelado entre jazigos dum cemitério durante um funeral. Os engates de esquina e a meia haste protagonizados por um homem e uma mulher encerram a série central com um apontamento ocasional e de desfecho imprevisível.
Os testemunhos de primeira pessoa regressam nas duas narrativas seguintes a preceder o diálogo ininterrupto e exclusivo com que se encerra a compilação, convertendo os «eu» e os «tu» em presença direta ou indireta num desfilar de «eles» centrais com algumas «elas» laterais a servir de pano de fundo. Um moço de futuro promissor frustra os planos do pai adotivo. Um telefonema feito a meio dum jantar de empresa termina num duplo divórcio. Uma fatura exorbitante dum pai de família já entrado na idade desencadeia uma disputa acesa travada a três vozes pelos filhos.
Os fragmentos breves dum certo quotidiano urbano cabem todos num retábulo de palavras inscritas numa escassa centena de páginas. As relações triangulares simples, duplas e triplas pululam em cada canto. As burguesias e barreganias são rainhas soberanas. Os vícios, defeitos e ridículos dos nossos dias são relevados a cada passo. A sátira mordaz e o sarcasmo impiedoso tomam conta do discurso e a caricatura surge. O escárnio e o maldizer são reis absolutos. O já experienciado pretérito atualiza-se nas falas pensadas ou ditas dos heróis/anti-heróis pintados. Isoladas, dispersas, fugidias. Cenas co-nhecidas de todos nós, literatos que somos por nossas mãos. Ratos e gatos irmãos desde pequenos ou ainda menos.
"Cenas conhecidas de todos nós...", que bem poderíamos ser literatos de histórias mais felizes, mas o bicho-homem é por natureza um ser imperfeito... Obrigada por mais esta boa sugestão!
ResponderEliminar