17 de julho de 2019

Luciano e as memórias do burro Lúcio

Παιδί και γάιδαρος (Séc. V EC) 
[Palácio Imperial de Constantinopla - Istambul ]
«Ὰπῄειν ποτὲ ἐς Θετταλίαν. ἦν δέ μοι πατρικόν τι σϑμβόλαιον ἐκεῖ πρὸς ἄνθωπον. ἐπιχώριον. ἵππος δέ με κατῆγε καὶ τὰ σκεύη καὶ θεράπων ήκολούει εῖς. ἐπορενόμην οὖν τὴν προκειμένιν ὀδόν. καὶ πως ἔτνχον καὶ ἄλλοι ἀπιόννες ἐς Ὕπατα πόλιν τῆς Θετταλίας, ἐκεῖθεν ὄντες. καὶ ἁλῶν ἐκοινωνοῦμεν, καὶ οὓτως ἐκείνη τὴν ἁργαλέαν ὀδόν ἀνύσαντες πληςίον ἤδη τῆς ηόλεως ἦμεν, πἀγὼ ἠρόμην τοὺς Θετταλοὺς εἴπερ ἐπίστανται ἄνδρα οἰκοῦνρα ἐς τὰ Ὕπατα, Ἳππαρχον τοὔνμα. γράματτα δὲ αὐτῷ ἐκόμιζον οἴκοθεν, ὤστε οἰκῆσαι παῤ αὐτῷ. oἰ δὲ εἰδέναι τὸν Ἳππαρχον τοῦσαι ἔλεγον καὶ ὅπῃ τῆς πόλεωϛ οἰκεῖ καὶ ὅτι ἀργύριον ἱκανòν ἔχελ καὶ ὅτι μίαν θεράπαιναν νρέφει καὶ τὴν αὑτοῦ γαμετὴν μóνας. ἔστι γὰρ φιλαργνρώτατος δεινῶς. ἐπεὶ δὲ πλησίον τῆς πóπεωϛ ἐγεγóνειμεν, νῆπóϛ τιϛ καὶ ἔνδον oἰκίδιον ἀνεκóν, ἔνθα ὁ Ἳππαρχος ᾤκει.»
Λουκιανὸς Σαμοσατεύς, Λούκιος ή Όνος (Séc. II EC)
A identificação imediata do romance à temática do amor ganhou foros de verdade axiomática que poucos se atrevem a contestar. A vulgari-zação do termo pode ser entendido como um procedimento redutor, dado excluir do seu corpus um conjunto de textos perfeitamente inseridos nesse paradigma, sem recorrer às relações sentimentais ou românticas dos protagonistas. Os criadores helénicos desse modo narrativo incluíram na sua tessitura a presença sistemática de figuras históricas conhecidas, para assim conferir uma verosimilhança indis-cutível ao percurso de vida do jovem casal de namorados que servem de fio condutor à diegese, também associada aos livros de viagens e de aventuras. Talvez tenha sido devido ao caráter compósito da nova modalidade literária, situada entre a epopeia e o drama, que as poéti-cas clássicas se dispensaram de lhe atribuir uma designação especí-fica e as modernas falharam na escolha duma etiqueta única.

A confirmar o ecletismo do género no mundo antigo, encontram-se as memórias proferidas na primeira pessoa por um jovem acaio, convertido temporariamente num burro. O conto, novela ou romance chegou até nós com o título de Metamorfoses, Lúcio ou Asno de Ouro, distribuído por três versões compostas em meados da segunda centúria da era comum em territórios imperiais de Roma. A variante atribuída a Luciano de Samósata terá sido antecedida por uma outra perdida escrita por Lúcio de Patras. Apuleio de Maudara aproveitou-se do sucesso alcançado pela obra grega e adaptou-a à sua maneira para latim. Ampliou a efabulação central e incluiu diversos episódios laterais, entre os quais se destaca o mito de Eros e Psique e uma breve iniciação aos mistérios de Ísis.

O sucesso da história deve-se em grande parte ao tom satírico e erótico como é contada ao público a que se destinava e ao que lhe sucederia nas gerações seguintes. Essa estrutura argumentativa eivada dum humor muito peculiar terá estado mesmo no advento da novela picaresca hispânica, inaugurada em castelhano pelo autor anónimo do Lazarilho de Tormes (1554). Os traços estruturais mais relevantes que as unem situam-se no âmbito da autobiografia fictícia de dois seres desprovidos de fortuna própria, ávidos de obter novas aprendizagens que lhes permitissem singrar no mundo hostil envolvente. Para tal, têm de superar grandes dificuldades impostas pelos múltiplos e diversificados amos que vão tendo, de suportar os maus tratos que lhes são infligidos e de desenvolver uma acabada arte e manha que os libertasse do destino nefasto a que tinham sido condenados. O anti-herói helenístico através da recuperação da natureza humana perdida e o peninsular através dum casamento de conveniência. A dimensão maravilhosa das confidências mais antigas contraria, todavia, a via realista preferida pelas mais recentes.

À distância de dezanove séculos, as desventuras de Lúcio-o-Burro continuam a cativar a atenção de todos aqueles que gostam dos livros e da leitura. O processo de amadurecimento do ator central da quase-fábula revelado de viva voz pelo próprio remete-nos para a passagem paulatina do seu estado de ingenuidade juvenil para o da maturidade adulta. Se a aplicação desastrada dum unguento mágico mal-escolhido lhe dá temporariamente a forma bestial de asno, a ingestão do antídoto acertado devolve-lhe de imediato a original perdida no início da metamorfose indesejada. Recorre ao efeito purificador da rosa, símbolo por excelência das águas primordiais, do renascimento místico e da perfeição acabada. Em última instância, representa a taça da vida, da alma, do coração e do amor. Lição duma exemplaridade modelar legada no final da Antiguidade greco-latina à medievalidade cristã, que um dia se converteria na modernidade europeia que chegou até nós e na qual estamos.
           

2 comentários:

  1. Interessante dissertação pedagógica, Prof.!

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  2. Um subterfúgio de me manter ligado à matéria dada agora feita a um ritmo necessariamente descontraído...

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