« Pour tous les voyageurs présents dans la rame, il était le liseur, ce type étrange qui, tous les jours de la semaine, parcourait à haute et intelligi-ble voix les quelques pages tirées de sa serviette. Il s'agissait de frag-ments de livres sans aucun rapport les uns avec les autres. Un extrait de recette de cuisine pouvait côtoyer la page 48 du dernier Goncourt, un paragraphe de roman policier succéder à une page de livre d'histoire. Peu importait le fond pour Guylain. Seul l'acte de lire revêtait de l'impor-tance à ses yeux. Il débitait les textes avec une même application achar-née. Et à chaque fois, la magie opérait. Les mots en quittant ses lèvres emportaient avec eux un peu de cet écoeurement qui l'étouffait à l'approche de l'usine. »
Jean-Paul Didierlaurent, Le liseur du 6h27 (2014)
Uma criança assiste estupefacta ao cerimonial de abate, esfolamento e estripamento dum coelho; um grupo de lenhadores entrega-se à sua labuta imemorial, enquanto um deles se abraça ao tronco dum vidoeiro branco; uma cadela observa fascinada uma mosca a entrar e sair da boca aberta dum homem já cadáver, rodeado do sangue que lhe escorrera por um buraco de bala; uma mulher confessa com toda a calma os pecados a um velho cura, que a ouve atentamente sem dar mostras dos protestos lançados pelo estômago esfomeado; um automobilista dá boleia a uma jovem insinuante e eficaz na arte duma sedução bem sucedida. Estes os argumentos dos cinco fragmentos lidos no RER das 6h27 pelo protagonista do primeiro romance de Jean-Paul Didierlaurent, o Leitor do comboio (2014).
Guylain Vignolles, de 36 anos de idade cumpridos por volta de 2012, trabalha a contragosto ou por inércia numa empresa encarregada de reduzir a pasta de papel reutilizável as edições de obras impressas não absorvidas pelo mercado. A eliminação desses volumes indese-jáveis é perpetrado numa Zerstor 500, a Coisa, uma monstruosidade de onze toneladas especializada no massacre sistemático e impie-doso de livros. É no interior dessa unidade de transformação que aquele a quem todos chamam por brincadeira ou pirraça Vilain Guignol lá vai conseguindo resgatar uma ou outra folha perdida do aniquilamento total, para depois lhes devolver por breves instantes a vida numa carruagem do comboio expresso parisiense. Todos os dias, à mesma hora, nos escassos vinte minutos de percurso até à STERN, a Sociedade de Tratamento e de Reciclagem Natural, para garantir os 1800€ de salário mensal.
O fluxo narrativo sofre uma inflexão radical, quando o salvador de pedaços de escrita impressa acha uma chave de memória USB no assento dobrável do metro suburbano. No seu interior, descobre uma pasta informática com setenta e dois ficheiros de texto numerados. Tratava-se duma espécie de diário pessoal digitalizado por uma misteriosa Julie, a trabalhar como dame-pipi num centro comercial não identificado. As particularidades das histórias ali reveladas desencadeiam no leitor indiscreto um coup de foudre virtual a exigir uma efetivação real urgente. Tece um bem urdido plano de localiza-ção da grande superfície descrita pela encarregada da limpeza dos sanitários. É nesse cenário insólito que conta cumprir o principal móbil da pesquisa, o encontro final com a jovem fabuladora desco-nhecida. Missão cumprida com sucesso e devidamente relatada pela ficção. Os pormenores que fiquem para quem os quiser conhecer sem resumos importunos de permeio.
Lido o livro que fala de livros, apercebemo-nos que todos eles estão ligados entre si como vasos comunicantes, por onde circulam as palavras que os compõem e as ideias que os alimentam. Os palcos onde o drama central se representa remetem-nos para outros espa-ços idênticos, onde a aversão à cultura literária conduz à sua supres-são completa. Assim o previram Aldous Huxley no Admirável mundo novo (1932), George Orwell no 1984 (1949) e Ray Bradbury no Fahrenheit 451 (1953), para só referir os mais conhecidos títulos de antecipação referidos a nível global. A mensagem transmitida por Jean-Paul Didierlaurent é de certo modo mitigada na sua versão dum mundo totalitário avesso à imaginação criativa, por se aplicar exclusivamente a exemplares excedentários de valor comercial nulo. Faltaria apurar até que ponto essa realidade se deve à qualidade intrínseca das obras sacrificadas ou ao desinteresse generalizado dos leitores. O ostracismo a que as humanidades têm ultimamente vindo a ser votadas talvez nos ajude a entender melhor esta aversão atual à leitura e aos livros, toda ela moldada na medida exata duma distopia consentida, defendida e aplaudida.
Guylain Vignolles, de 36 anos de idade cumpridos por volta de 2012, trabalha a contragosto ou por inércia numa empresa encarregada de reduzir a pasta de papel reutilizável as edições de obras impressas não absorvidas pelo mercado. A eliminação desses volumes indese-jáveis é perpetrado numa Zerstor 500, a Coisa, uma monstruosidade de onze toneladas especializada no massacre sistemático e impie-doso de livros. É no interior dessa unidade de transformação que aquele a quem todos chamam por brincadeira ou pirraça Vilain Guignol lá vai conseguindo resgatar uma ou outra folha perdida do aniquilamento total, para depois lhes devolver por breves instantes a vida numa carruagem do comboio expresso parisiense. Todos os dias, à mesma hora, nos escassos vinte minutos de percurso até à STERN, a Sociedade de Tratamento e de Reciclagem Natural, para garantir os 1800€ de salário mensal.
O fluxo narrativo sofre uma inflexão radical, quando o salvador de pedaços de escrita impressa acha uma chave de memória USB no assento dobrável do metro suburbano. No seu interior, descobre uma pasta informática com setenta e dois ficheiros de texto numerados. Tratava-se duma espécie de diário pessoal digitalizado por uma misteriosa Julie, a trabalhar como dame-pipi num centro comercial não identificado. As particularidades das histórias ali reveladas desencadeiam no leitor indiscreto um coup de foudre virtual a exigir uma efetivação real urgente. Tece um bem urdido plano de localiza-ção da grande superfície descrita pela encarregada da limpeza dos sanitários. É nesse cenário insólito que conta cumprir o principal móbil da pesquisa, o encontro final com a jovem fabuladora desco-nhecida. Missão cumprida com sucesso e devidamente relatada pela ficção. Os pormenores que fiquem para quem os quiser conhecer sem resumos importunos de permeio.
Lido o livro que fala de livros, apercebemo-nos que todos eles estão ligados entre si como vasos comunicantes, por onde circulam as palavras que os compõem e as ideias que os alimentam. Os palcos onde o drama central se representa remetem-nos para outros espa-ços idênticos, onde a aversão à cultura literária conduz à sua supres-são completa. Assim o previram Aldous Huxley no Admirável mundo novo (1932), George Orwell no 1984 (1949) e Ray Bradbury no Fahrenheit 451 (1953), para só referir os mais conhecidos títulos de antecipação referidos a nível global. A mensagem transmitida por Jean-Paul Didierlaurent é de certo modo mitigada na sua versão dum mundo totalitário avesso à imaginação criativa, por se aplicar exclusivamente a exemplares excedentários de valor comercial nulo. Faltaria apurar até que ponto essa realidade se deve à qualidade intrínseca das obras sacrificadas ou ao desinteresse generalizado dos leitores. O ostracismo a que as humanidades têm ultimamente vindo a ser votadas talvez nos ajude a entender melhor esta aversão atual à leitura e aos livros, toda ela moldada na medida exata duma distopia consentida, defendida e aplaudida.
Uma distopia onde as vitimas são os livros?!
ResponderEliminarLeitura curiosa.
Seguindo as pisadas de Huxley, Orwell e Bradbury, este autor, que não conheço, desperta de imediato a curiosidade de quem não pode dispensar um livro no seu dia a dia. Mesmo que esta distopia esteja limitada, é bom continuarmos a ouvir vozes que se levantam contra a ditadura do mundo globalizado... Obrigada por este texto pedagógico, Prof!
ResponderEliminar