«Já agora ficas a saber: ele é pago para escrever produtos por encomenda, a que chamamos "livros" por simples facilidade de expressão.»João Aguiar, O Priorado do Cifrão (2008)
Levei uma eternidade a resistir heroicamente à leitura do The Da Vinci Code (2003) de Dan Brown. A minha desconfiança pelos bestsellers é antiga e visceral. Contentei-me a ver o filme num canal de sinal aberto ou da TV Cabo. Sem grande entusiasmo. As frases bombásticas que acompanham as edições impressas dessas obras provocam-me uma urticária incurável. Já o disse várias vezes e volto a repeti-lo. João Aguiar parece partilhar a mesma opinião. Só que o faz de forma bem mais criativa nas páginas d’O Priorado do Cifrão (2008), paródia bem-humorada aos designados romances teológicos tão em voga hoje em dia, onde a cultura de massas impera inexoravelmente.
Os capítulos iniciais da ficção portuguesa conduzem-nos abrupta-mente ao ambiente peculiar do mundo dos livros de grande tiragem, todo ele feito por encomenda e à escala planetária. Centra-se no modelo americano referido e transforma-o no The Caravaggio Papers de Ben Browning. A teoria da conspiração, típica do género, desen-volve-se à sombra do misterioso Priorado do Simão. As principais co-ordenadas do pastiche são evidentes. Depois, a teia narrativa envere-da por outros percursos discursivos bem mais sinuosos do que os do mero fabrico eficiente de êxitos literários. O sucesso editorial é inegá-vel, mas passageiro. A descoberta incessante de códigos/papéis perdidos, a proliferação de infalíveis fórmulas de deus, a exploração metódica desse filão esotérico mais não são do que subterfúgios ro-manescos para denunciar algo de muito mais assustador: o apro-veitamento da crise em que a nossa sociedade está mergulhada até à ponta das orelhas... O usufruto continuado da instabilidade criada, esse, está na mão de quem detém o poder, de quem manipula a informação, de quem engendra os cifrões.
Para entender melhor a mensagem de João Aguiar, haverá que ler alguns dos títulos anteriormente publicados. Sobretudo os últimos. Limitar-me-ei ao «Enfim, o paraíso» (1990), conto de antecipação po-lítica mais tarde ampliado no romance O jardim das delícias (2005). A ação nesses relatos situava-se num futuro ainda distante, utópico, numa Federação Europeia já concretizada, mas moribunda. A retratada neste terceiro ato do drama representa-se num palco global da atualidade, perante a indiferença dos espetadores. Essa a lição do texto. O alerta. A ironia trágica por excelência deste nosso mundo contemporâneo.
NOTA
Publiquei esta pequena crónica no jornal eletrónico Contemporâneo em janeiro de 2009, pouco depois do romance ter sido publicado. Mal imaginava então que seria o último. Fi-lo no âmbito dum evento académico organizado pelo curso de Ciências de Comunicação a que João Aguiar já não pôde comparecer por questões de saúde.
Transcrevi-o no Pátio de Letras tal e qual, sem acrescentar uma palavra às 300 originais que me foram encomendadas. Tinha acabado de saber do falecimento do autor d’O Priorado do Cifrão e de tantos outros romances, contos e ensaios com que nos tinha brindado ao longo da carreira literária iniciada em 1984.
Passada uma década sobre a sua morte, resolvi trazer para estas Histórias d’Arthur d’Algarve este «marketing, merchandising & media do priorado do cifrão», escolhendo desta vez o dia do seu aniversário de nascimento. Procedi à substituição duma ou outra palavra ao texto original, tentando assim amenizar a ideia algo radical que nutria pelos bestselleres. Nada mais. É que no mundo dos livros de grande tiragem também há lugar para as grandes obras da cultura literária.