1 de março de 2021

Lawrence Durrell, Clea: o quarto ato do Quarteto de Alexandria


«“He gave a croaky sob and crawled out from between the sheets, looking ridiculous in his long woollen combinations, to hunt for a handkerchief in the chest of drawers. To the mirror he said: The most tender, the most tragic of illusions is perhaps to believe that our actions can add or subtract from the total quantity of good and evil in the world.”»
Lawrence Durrell, Clea (1960: iv)

A Grécia Antiga foi a criadora absoluta da Tragédia e do Romance. É sabido longa data. O género dramático surgiu dos hinos dedicados a Dioniso, o deus de origem tebana que nasceu duas vezes; o género diegético, mais tardio, constitui uma evolução natural da Epopeia ver-sificada para a prosificada. Tanto um como outro tratam de assuntos idênticos, divergindo no facto do primeiro se limitar a mostrar os even-tos pretéritos num teatro (local público onde se vê) e o segundo de os contar através das imagens verbais impressas num livro (local individual onde se lê). O quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell participa destas duas caraterísticas formais: é uma sucessão de ficções que são descritas e narradas por intermédio do mediador autoral. Acresce que este não se exime de transcrever um ou outro poema disperso de autores da sua predileção, sobretudo os de Konstantinos Kaváfys, poeta grego da cidade por si traduzidos-adaptados, parafraseados-transcritos na íntegra em anexos finais, entre outros ingleses, como George Darley, numa referência irónica ao narrador homónimo das duas primeiras partes da obra e também desta Clea (1960), a quarta e última etapa da saga.

A ligação de todos estes episódios do quotidiano atual ao universo helénico clássico está constantemente a ser lembrado. Os aspetos de encenação teatral aparecem amiúde no texto, com um enfoque muito especial no caráter funesto dos episódios qualificados de trágicos. A estrutura seguida também nos remete para essa imitação do mundo real das pessoas de carne e osso nas páginas dum livro de papel e tinta. Por altura das festividades anuais dedicadas ao filho de Sémele e Zeus, eram apresentadas a concurso três tetralogias dramáticas, constituídas por três tragédias e um drama satírico, que podiam ou não seguir uma linha condutora unitária ou tratar de assuntos distintos. Se me é permitido estabelecer alguns paralelismos distanciados 2600 anos no tempo entre o modo de recordar os mitos do período áureo ateniense (sécs. ⅵ-ⅴ AEC) e os fragmentos de vidas vividas coligidos muito recentemente (séc. ⅹⅹ EC), diria que a trilogia inicial Justine-Balthazar-Mountolive se incluiria no grupo das tragédias, pelo seu caráter mais contundente de levantamento de problemas de difícil resolução imediata pela vontade humana, e Clea o remate do quarte-to alexandrino, pelo seu caráter mais festivo e alegre, corolário lógico da tetralogia. Um par de heroínas e um par de heróis. Mais uma vez a simplicidade dos inventores absolutos da literatura ocidental.

Quando as cortinas sobem pela última vez nas páginas impressas da ficção, retomamos as primeiras aberturas, mas em sentido inverso. Depois de passar uma temporada imprecisa numa das Cícladas gregas, Darley prepara-se para regressar a Alexandria a convite de Nessim. Leva consigo a filha que este tivera com Melissa. A entrada no porto é feito em ritmo de hino triunfal sob um bombardeamento da II Guerra Mundial. Esta, que até aí só tinha sido referida de raspão, surge logo nas primeiras cenas dignas duma descrição épica ou dum párodo dramático da condição humana. Os ecos da conceção cénica dos quatro relatos maiores com título de capa e folha de rosto voltam a manifestar-se no final de cada uma delas, entendidas como um todo com identidade própria. Ao cortejo rítmico de entrada corresponde sempre um canto rítmico de saída do coro ou êxodo de despedida. O narrador-corifeu subjetivo da peça-relato, cumprido o seu destino na antiga terra de faraós, de ter resolvido os problemas existenciais das memórias de amores antigos, aos amigos e lugares da cidade que fora sua durante o longo período de aprendizagens juvenis, vira costas ao Oriente e dirige-se ao Ocidente. A passagem simbólica pela ilha anónima perdida do mar Egeu. A circularidade do percurso diegético-dramático estava concluído. Leva consigo a imagem redentora de Clea que espera reencontrar, mais cedo que tarde, em Paris, para reconstruirem em conjunto uma vida nova ou uma nova fase da mesma.

À imagem do Rei Édipo (c. 429/425 AEC) de Sófocles, que percorre um árduo e longo processo de autoconhecimento, também Darley efetua o seu com os restantes parceiros de caminhada, sem todavia enveredar pela autopunição. Os tempos são outros e a catarse faz-se por meios menos invasivos, através da autópsia exaustiva das ruínas de amores-paixões-amizades deixadas para trás. Na autocrítica de-sapiedada aos seus comportamentos pretéritos de aprendizagem, no autorretrato irónico caricaturado como se tratasse dum epitáfio registado num espelho com espuma de barbear. No fundo, resulta numa reflexão pessoal do próprio autor romancista-encenador, que desenha na personalidade controversa de Pursewarden uma espécie de alter ego literário, sobretudo em «Os meus diálogos mudos com Frei Burro», um trecho dos cadernos, uma verdadeira diatribe sobre a escrita do romance subvencionado e produzido acriticamente por uma cultura puritana, cheia de sarro e ignorante da arte. Para tal, contribuiu a experiência individual de alguém que viveu vários anos na Grécia, repartido pela ilha de Corfu e pela capital Atenas, de ter vivido a parte final da guerra no Egito e de se ter depois instalado definitivamente em França, vivências que se deixam ver ao longo do texto, designadamente nos idiomas registados no relato. E, assim, o cidadão britânico nascido na Índia se converteu no grande cronista do Quarteto de Alexandria.

4 comentários:

  1. Magnífico texto pedagógico, Prof. Ainda bem que fica disponível na net, para uso e proveito dos estudantes e amantes de literatura!

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    1. Das quatro reflexões de leitura que fiz ao Quarteto, esta foi a que me deu mais prazer de compor, talvez por estar associada duma forma tão clara à herança multissecular helénica, berço da nossa cultura ocidental. Obrigado pelas palavras amigas que sempre dedicas aos meus escritos, o meu passatempo mais divertido e gratificante do momento.

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  2. Um texto muito interessante, a leitura parece ter terminado com chave de ouro.
    Também quero ler.

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