17 de março de 2021

El Greco e o enterro miraculoso do Senhor Conde de Orgaz em Toledo

            EL GRECO            
Δομήνικος Θεοτοκόπουλος - Doménikos Theotokópoulos 
«El Entierro del Señor de Orgaz»

  Maneirismo místico toledano  

Toledo é conhecida como a cidade das três religiões: a muçulmana, a judaica e a cristã. A cidade mítica da tolerância medieval, anterior à Inquisição, é também a cidade das ciências e do espírito, assente na arquitetura, astronomia, filosofia, matemática e medicina, em grande parte devido à escola de tradutores que dominavam o árabe e o verteram para latim. A cidade imperial de Afonso X, o Sábio, é também a cidade de confluência dos artistas e das artes, aquela que Doménikos Theotokópoulos, El Greco, escolheu para viver e criar, rodeado da cultura hispânica dos minaretes e dos campanários, das fortificações mudéjares e das igrejas góticas, das ruelas tortuosas e inspiradoras, encontro de rotas a ligar a tradição oriental pretérita à ocidental nascente.

Visitei a cidade várias vezes. Numa delas, dediquei parte do dia a olhar de perto El Entierro del Señor / Conde de Orgaz, uma das telas mais famosas do grande mestre da pintura maneirista greco-castelhana, exposta desde a sua criação na Capilla de la Conceptión da Iglesia de Santo Tomé. Paguei o ingresso, dei uma volta pelo templo e sentei-me num banco corrido a observar o quadro monumental que ali me levara. Aproveitei para ouvir atentamente as descrições proferidas em diversos idiomas pelos guias turísticos que por ali passaram. No final, tirei as minhas próprias ilações do que vira, baseado nos conhecimentos que já dispunha e no cruzamento de informações nem sempre coincidentes ali transmitidas pelos cicerones de turno.          

Dizem os meus olhos que a representação icónica está repartida por dois planos distintos da existência humana. No superior vislumbramos um cenário celeste da vida eterna, regido por Jesus Cristo rodeado de Anjos e Bem-Aventurados. A seus pés figuram ainda a Virgem Maria e São João Batista, ladeados por São Pedro e São Paulo. Recebem na sua companhia a alma de Gonzalo Ruiz de Toledo, Senhor da cidade de Orgaz, benfeitor da Igreja, por si reedificada e ampliada. No inferior representa-se o enterro daquele que fornece o nome ao óleo e tema central da mesma. A colocação no túmulo é feita por Santo Agostinho e Santo Estêvão, que desceram à terra para honrar o piedoso cavaleiro, na presença duma procissão de fiéis que assistem ao ofício divino.

Regressei à cidade outras vezes, com passagens mais ou menos prolongadas, mas não voltei a visitar o retábulo colocado por cima do túmulo do benemérito falecido 250 anos antes de ter sido retratado. Ao longo dos anos tive ocasião de admirar outras obras do autor nos mais diversos locais. Os exemplares expostos na catedral de Toledo, nos museus do Prado em Madrid e Provincial de Belas Artes de Sevilha, na National Gallery em Londres e até no Palácio da Ajuda em Lisboa, foram incapazes de marcar a minha memória do mesmo modo e intensidade como o daquele préstimo fúnebre milagroso fixado num painel pintado por um dos maiores criadores plásticos de todos os tempos. Amor à primeira vista. Paixão para toda a vida. Em arte tudo é possível.

5 comentários:

  1. Só visitei Toledo há cerca de dois anos, visita que cumpri com prazer pois a cidade era uma das minhas referências desde a infância. Tive a sorte de visitar a Capela com um grupo que tinha guia espanhola privativa e nos tinha reservado meia hora para admirar o quadro sem a pressão das multidões... Causou-me uma forte impressão pelo misticismo religioso do tema e pela mestria do imortal pintor. Mas, leiga na matéria, gostei mais de outros quadros de El Greco na Catedral de Toledo, como O Espólio e representações do Menino e dos Apóstolos...

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    1. Quando se trata dos grandes criadores de arte, é difícil selecionar uma entre muitas outras, porque todas elas têm as suas particularidades que as diferenciam entre si e tornam únicas. A minha fixação neste «Entierro» em particular deve-se, em grande parte, ao facto de ter sido a primeira obra que admirei do mestre grego e à magnificência da sua representação cénica plasmada em dois planos, o que já anunciava o aparecimento do Barroco.

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  2. Não conheço Toledo ou outra qq cidade espanhola. É com muito prazer que leio e sinto as suas palavras sobre aquela obra em particular.

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  3. Teresa Salvado de Sousa17 de março de 2021 às 22:51

    Compartilho o encantamento pela obra que vi pela primeira aos 16 anos. Foi durante a viagem de finalistas do liceu (nesse tempo, as viagens de finalistas tinham uma componente cultural forte.

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  4. Adoro El Greco... Maravilha!!! Surrealismo antes do Surrealismo. E Dali distante de quatro séculos séculos...

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