23 de janeiro de 2021

Lawrence Durrell, Justine: o primeiro ato do Quarteto de Alexandria

«“There are only three things to be done with a woman” said Clea once. “You can love her, suffer for her, or turn her into literature.”»
Lawrence Durrell, Justine (1957: I)
Regressei a uma livraria após a difusão da crise pandémica causada pela COVID-19, para comprar uma coletânea de contos e um álbum de arte e saí com quatro romances publicados numa edição conjunta. Não encontrei o que procurava mas também não comprei o que não queria. Vim carregado com a obra maior de Lawrence Durrell, O quarteto de Alexandria, publicado agora com o texto definitivo revisto e prefaciado pelo autor em 1962. Lembro-me de ter lido na década de 60 cada um dos títulos da obra, através do empréstimo temporário da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian ou da Biblioteca Pública dos Pavilhões do Parque, mas não sei precisar as datas ou sequer o assunto tratado em cada um deles. Boa altura para os rever com toda a calma neste início dum novo ano a prometer um regresso a uma normalidade há muito desejada.

É conhecida a apetência deste britânico com sangue gaélico-irlandês nascido na Índia de reunir ciclos da mesma história contada com pontos de vista diferentes, técnica concretizada numa espécie de visão prismática, que está na origem do roman-fleuve. Assim procedeu n'O quinteto de Avinhão e no dueto A revolta de Afrodite, à semelhança desta tetraficção alexandrina. Iniciei a releitura deste contínuo de palavras, com o primeiro título da série, o Justine (1957), que percorri dum só fôlego e me obrigou a parar um pouco antes de partir para a redescoberta dos restantes atos do drama aqui iniciado em forma duma tetralogia representada por um quarteto de amigos do narrador-personagem subjetivo de primeira pessoa, que os identifica logo no fragmento inicial do relato: Justine, Nessim, Melissa e Balthazar.

O predomínio da descrição sobre a narração permite sintetizar o argumento romanesco em poucas palavras, plasmadas num duplo manège à trois ou num completo pas de quatre, dando assim jus à crença de S. Freud, quando regista no fragmento duma das suas Cartas – que serve de base à epígrafe inaugural da saga – a convicção de ser todo o ato sexual um processo que envolve quatro pessoas. O envolvimento do relator-intérprete com a misteriosa Justine casada com Nessim e deste último com a frágil Melissa amante do emissor interno do relato, um pobre professor irlandês, aprendiz de escritor imigrado na capital do Egito, sem recursos próprios e ponto de união entre todos os eixos da tessitura discursa. Os factos acontecidos são feitos através do testemunho pessoal de quem os viveu, registados nas páginas dos diários íntimos do casal referido e nos extratos do Mœurs, um romance post-mortem do fictício Jacob Arnauti, primeiro marido da personagem que empresta o nome à obra, e nas notas manuscritas num enorme maço de papel que o emissor externo do testemunho autobiográfico da obra deu a forma de letra impressa e ofereceu a todos os seus leitores.

Centrado na cidade fundada por Alexandre da Macedónia em 332AEC no delta do Nilo, adjacente ao lago Mareótis e banhada pelo mar Mediterrâneo, nas décadas de 30 que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, o romance que abre a série desenvolve-se em torno do amor-amizade-paixão que une os quatro interlocutores do drama. O mestre-escola empobrecido tem um caso com a esposa judia dum rico banqueiro copta que, por sua vez, acaba por ter uma filha com a amante grega do rival. A ironia trágica própria do género resulta de ser este último a encarregar-se sozinho da educação da criança e não o seu pai biológico, concretizando assim a designada lei da retribuição, aquela que premeia o bem com o mal e o mal com o bem. A história simbolicamente associada ao pensamento cabalístico do misticismo judaico não se esgota nos episódios nucleares traçados aqui no primeiro ato em cena da tetralogia. A continuação far-se-á nos três seguintes que dão corpo ao todo romanesco e me preparo para ver-ler com toda a atenção. No intervalo da representação, ainda aproveito o tempo livre para visitar os poemas de Konstantinos Kaváfys, referidos frequentemente ao longo de texto e transcritos nos Apêndices com tradução livre do grego para inglês de Lawrence Durrell. Entretanto já se ouvem as pancadinhas de Molière. A representação vai recomeçar. Sobem os panos e eu reabro o livro que em boa hora trouxe da estante duma livraria da minha cidade...

4 comentários:

  1. Leituras bem interessantes, Prof, que a aura histórica da capital do Egito torna mais mais sugestiva e que nos transmites com um belíssimo enquadramento literário.

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  2. Pela descrição parece ser uma leitura bem interessante. Fico alertada para quando for possível adquirir o fazer.

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  3. Grande leitura a acontecer...

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  4. Foi paixão à primeira leitura, algures nos anos 70. É capaz de ser boa altura para reler. Felizmente tenho-os aqui.

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