14 de setembro de 2017

Carlos Ruiz Zafón, o labirinto dos espíritos e a cidade dos espelhos ou das maravilhas

«El laberinto se alzaba frente a mí en un espejismo infinito. Una espiral de escalinatas, túneles, puentes y arcos tramados en una ciudad eterna construida con todos los libros del mundo ascendía hasta una inmensa cúpula de cristal.»
Carlos Ruiz Zafón, El laberinto de los espíritus, 2016
Enchi-me de coragem durante um ano escolar inteiro para viajar pelos derradeiros episódios da tetralogia do Cemitério dos Livros Esquecidos de Carlos Ruiz Zafón. Cerca de nove meses, para ser mais exato. O tempo duma gestação completa com parto normal. Durante a primeira quinzena de agosto destas férias de verão, dediquei-me à leitura exclusiva das novecentas e tantas páginas d'O labirinto dos espíritos (2016). Ultrapassada a linha de meta da maratona, respirei fundo, pus o volumoso tomo que o alberga de lado e descansei um pouco para recobrar o fôlego das emoções de percurso. Imensas e intensas.

Quando no final d'O prisioneiro do céu (2011) se afirma que a história em vez de ter terminado mal havia começado, não duvidei um só instante da sua veracidade. Depois de ter seguido as peripécias em cadeia d'O jogo do anjo (2008) herdadas d'A sombra do vento (2001), não duvidei que assim fosse. Cheguei a pensar poder tratar-se de novos dados trazidos à intriga por Sofia Gispert, a última personagem a entrar em palco, rodeada de secretismo e promessa dum desenlace favorável ao destino familiar dos Sempere, livreiros da cidade condal e protagonistas da saga. Afinal era uma falsa pista. Uma manobra de diversão do autor ou inferência apressada do leitor. O fio condutor da narrativa é entregue a Alicia Gris, criatura de sombras, mulher fatal, animal urbano, pérfida, misteriosa, noturna, um pouco de tudo e um muito de nada, anjo e demónio, heroína e vilã. Tudo depende do ponto de vista da ficção, assente num conjunto de lances detetivescos insólitos, onde os policias-bandidos vão sendo eliminados um a um pelos marginais-justiceiros, num maniqueísmo feito de pernas para o ar. Robins dos Bosques de totalitarismos recentes, aqueles que atravessam a derradeira centúria do segundo milénio, revisitados pela vontade expressa da literatura intemporal.

O desenho estrutural dos quatro romances da série optam por uma solução de compromisso. Após ter oscilado entre os domínios do natural e do sobrenatural e de se ter insinuado na terra de ninguém da hesitação, o maravilhoso desfaz-se, o fantástico esclarece-se e o estranho instala-se. Os enigmas desaparecem e a fábula cumpre-se. Os géneros teóricos definidos por Tzvetan Todorov* encontram-se todos representados neste longo rosário novelesco de traçado neogótico, a meio caminho entre o amor/morte e o ódio/vida, o que, para todos os efeitos, quererá dizer mais ou menos o mesmo. Segue a técnica do folhetim ou da entrega periódica por fascículos. Quando se julga que os maus vão ser castigados e os bons premiados, volta tudo ao princípio. O desenlace há muito esperado terá de esperar por uma ocasião mais oportuna, chame-se ele conclusão, desfecho, termo, remate ou epílogo.

Os relatos obscuros de vida de Julian Carax, David Martín e Víctor Mataix, os autores obscuros de livros esquecidos, estão concluídos. O destino existencial de Juan, Daniel e Julian Sempere está traçado. As crónicas de Barcelona, a cidade dos malditos, dos mistérios e das sombras, abriram um período de pousio forçado. O labirinto dos espíritos, dos espelhos ou das maravilhas - imagem pálida e distante do país imaginado por Lewis Caroll para as Aventuras de Alice - inscreveu o derradeiro ponto final. O pano desceu de vez sobre a ribalta, traçando a fronteira inexorável entre a boca de cena e a plateia. Desconheço qual será o próximo projeto do grande artífice atual das letras catalãs. Tudo me leva a antecipar que se manterá fiel aos registos da escrita a que nos habituou neste último quarto de século. A sonoridade das palavras gravadas no papel sobrepor-se-á, de certeza, a todos os enredos gizados ao jeito dos filmes a preto e branco de Série B, com muitas pinceladas de loucura e cordura à mistura. Razão mais do que suficiente para correr a uma qualquer livraria do aquém ou além Guadiana, para adquirir os primeiros fascículos dessa nova série de folhetins de cordel, compilados num livro que talvez fale doutros livros e com entrega sazonal garantida.

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Paris, Le Seuil, 1970.

10 comentários:

  1. Grande e saborosa empreitada. Hei de ler Carlos Luiz Záfron.

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  2. Uma experiência de leitura (ainda só li O Prisioneiro do Céu) inesquecível, implacável e fisicamente dolorosa. Compararia a sensação com a lendo A Little Life (2015) de Hanya Yanagihara. Um best-seller americano sem os ingredientes típicos sobre quatro amigos de Nova Iorque. Tem um conteúdo brutal e implacavelmente descrito. Tive que, exatamente como diz o Artur, colocar o livro de lado para recuperar o fôlego.

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  3. Gosto muito de ler Carlos R. Zafron!

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  4. Vera Castanheira Nunes21 de setembro de 2017 às 16:54

    Gostei e muito de "A sombra do vento" Gostei muito menos dos outros que se lhe seguiram e fazem parte da trilogia. Não gostei de "Marina", mas enfim, era um dos primeiros livros. Agora este último, é detestável. Diálogos execráveis, personagens já sem alma, tudo indigno do escritor de "A sombra do vento".

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    1. Execrável é um adjetivo um pouco forte para qualificar a escrita de Zafón, muito embora o patamar de excelência atingido pel' «A sombra do vento» esteja muito acima da conseguida dos três romances seguintes da tetralogia. Gostei imenso da «Marina», mas por razões distintas. O que me fascina mais neste autor é capacidade extraordinária que tem de verbalizar ideias. A sonoridade das palavras escolhidas é fascinante, pelo menos em castelhano, idioma que tenho o privilégio de entender com alguma fluência.

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    2. Vera Castanheira Nunes21 de setembro de 2017 às 16:57

      Só utilizo" execrável", porque foi uma espécie de traição à escrita e ao conteúdo. E é repetitivo, esquece-se do que disse e repete. Digamos que o revisor se fartou devido ao tamanho da obra (aconteceu o mesmo no livro de Maria Tereza Horta sobre a Marquesa de Alorna. A revisora deixou de prestar a mesma atenção por volta da quadragésima página). Claro que estou a falar de um bom escritor, não um escritor de pacotilha A sua observação é justa, Artur.

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  5. Sobre e o que escreve Carlos Ruiz Záfron, não posso opinar porque nada li do autor, da obra de Maria Teresa Horta, sim, conheço a sua obra razoávelmente e não podia estar mais em desacordo com a opinião da Vera C. N., relativamente à obra As Luzes de Leonor, um romance poético, histórico. Um dos livros que mais prazer me deu ler até hoje. O romance mais extraordinário que li até hoje, é mesmo aquele que ando terminando: Guerra e Paz, de Lev Tolstoi.

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    1. Opiniões, Ana Paula, de que a literatura se alimenta. A poesia e a prosa também vivem de repetições. Faz parte da sua forma de se desenvolverem como arte. E sobre «As Luzes de Leonor», de Maria Teresa Horta», apraz-me dizer que foi um dos melhores livros que li no último quarto de século, ou talvez mais...

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  6. Grandes leituras para férias.

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